Изменить стиль страницы

O comandante adjunto diz:

– Dacelli, chame os homens, um por um.

– Grandet?

– Presente.

– Saia.

Ele sai, no meio dos quarenta guardas. Dacelli diz para ele:

– Vai trabalhar.

– Não posso.

– Recusa?

– Não, não recuso, estou doente.

– Desde quando? Você não se declarou doente na primeira chamada.

– Hoje de manhã, eu não estava doente, mas agora estou.

Os sessenta primeiros chamados respondem exatamente a mesma coisa, um depois do outro. Apenas um vai até a franca recusa de obediência. Ele tinha provavelmente a intenção de ser mandado a Saint-Laurent, passar pelo conselho de guerra. Quando lhe dizem:

– Recusa?

Ele responde:

– Sim, recuso, três vezes.

– Três vezes? Por quê?

– Porque vocês me enchem o saco. Recuso categoricamente trabalhar para sujeitos tão fodidos como vocês.

A situação era muito tensa. Os guardas, principalmente os jovens, não agüentavam ser humilhados assim pelos presos. Só esperavam uma coisa: um gesto de ameaça que lhes permitiria entrar em ação com suas metralhadoras, aliás dirigidas para o chão.

– Todos aqueles que foram chamados, pelados! Em marcha para as celas!

À medida que as roupas iam caindo, ouvia-se às vezes o ruído de uma faca que batia sobre o asfalto do pátio. Aí chega o médico.

– Bom, esperem. O médico está chegando. Podia, doutor, examinar estes homens? Aqueles que não forem reconhecidos como doentes irão para as celas. Os outros ficarão na choça.

– Há sessenta doentes?

– Sim, doutor, com exceção deste, que se recusou a trabalhar.

– O primeiro – diz o médico. – Grandet, o que é que você tem?

– Uma indigestão de carcereiro, doutor. Somos todos homens condenados a longas penas, e a maioria à prisão perpétua, doutor. Nas ilhas não há esperança de fuga. Por isso, o pessoal só agüenta esta vida se houver uma certa elasticidade e compreensão no regulamento. Mas, hoje de manhã, um guarda tomou a liberdade, na frente da gente, de querer bater com um cabo de picareta num colega estimado por todos. Não era um gesto de defesa, já que este homem não tinha ameaçado ninguém. Ele disse que não queria usar uma picareta, nada mais. Essa é a razão da nossa epidemia coletiva, Agora, o senhor que julgue.

O médico abaixa a cabeça, fica pensando por mais de um minuto e diz:

– Enfermeiro, escreva: “Em virtude de uma intoxicação alimentar coletiva, o guarda-enfermeiro fulano tomará as providências necessárias para purgar com vinte gramas de sulfato de sódio todos os transportados que se declararam doentes neste dia. Quanto ao prisioneiro X, que ele seja posto sob observação no hospital, para que se verifique se a sua recusa de trabalho foi feita em posse de todas as suas faculdades mentais”.

Ele dá a volta e vai embora.

– Todos para dentro! – grita o segundo-comandante. – Peguem as suas coisas e não esqueçam as facas.

Neste dia, todos ficam na choça. Ninguém pôde sair, nem o portador de pão. Pelo meio-dia, no lugar da sopa, o guarda-enfermeiro, acompanhado por dois forçados-enfermeiros, chegou com um balde de madeira, cheio de purgativo de sulfato de sódio. Três apenas tiveram que engolir o purgante. O quarto caiu em cima do balde, fingindo uma crise de epilepsia perfeitamente imitada, jogando assim o purgante, o balde e a concha para todos os lados. Assim se encerrou o episódio, com o trabalho que teve o chefe da choça para enxugar o líquido derramado no chão.

Passei a tarde conversando com Jean Castelli. Ele veio comer com a gente. Ele vive associado a um sujeito de Toulon, Louis Gravon, condenado por roubo de peles. Quando lhe falei da fuga, seus olhos brilharam. Disse:

– No ano passado, quase fugi, mas a coisa gorou. Tinha certeza de que você não era daqueles que ficam quietos aqui. Só que falar em fuga nas ilhas é o mesmo que falar hebreu. Por outro lado, acho que você não entendeu ainda os forçados das ilhas. Tais como você os está vendo, 90 por cento se acham relativamente felizes. Se o cara mata alguém, nunca tem uma testemunha; se rouba, a mesma coisa. Qualquer coisa que um sujeito faça, todos se solidarizam para defendê-lo. Os forçados das ilhas têm medo de uma única coisa: que uma fuga dê certo. Porque, aí, sua relativa tranqüilidade fica abalada: investigações constantes, nada de baralho, nada de música – os instrumentos são quebrados nas investigações -, nada de jogo de xadrez e de damas, nada de livros, quer dizer, mais nada! Nada de artesanato, também. Tudo, absolutamente tudo é suprimido. Revistam sem parar. Açúcar, óleo, bife, manteiga, tudo isso desaparece. Os que conseguiram fugir das ilhas sempre foram presos no continente, perto de Kourou. Mas, para as ilhas, a fuga deu certo: os sujeitos puderam sair da ilha onde estavam. De modo que vêm sanções contra os guardas, que se vingam em cima de todo mundo.

Estou ouvindo com a máxima atenção. Nem estou acreditando. Nunca eu tinha pensado no assunto por esse lado.

– Conclusão – diz Castelli -, no dia em que você quiser preparar uma fuga, tome todas as precauções. Antes de conversar com qualquer cara, se não for um amigo íntimo, pense dez vezes.

Jean Castelli, assaltante profissional, é de uma vontade e de urna inteligência fora do comum. Ele detesta a violência. A alcunha dele é “O Antigo”. Por exemplo, ele só se lava com sabão e, se eu me lavei com Palmolive, ele me diz:

– Mas que cheiro de viado, seu! Você se lavou com sabão de mulher!

Infelizmente, ele já tem 52 anos, mas dá prazer ver sua energia de ferro. Ele me diz:

– Você, Papillon, parece que é meu filho. A vida das ilhas não lhe interessa. Você come bem porque é necessário se manter em boa forma, mas nunca vai se acostumar a viver nas ilhas. Parabéns. Entre todos os forçados, somos apenas uma meia dúzia os que pensam assim. Há, é verdade, uma quantidade de homens que pagam fortunas para serem desinternados e poder ir para o continente, pensando em fugir. Mas, aqui, ninguém acredita na fuga.

O velho Castelli me dá conselhos: aprender inglês e, sempre que puder, falar castelhano com um cara que fale essa língua. Ele me emprestou um livro para aprender o castelhano em 24 lições. Um dicionário francês-inglês. Ele é amigo de um marselhês, Gardès, que entende de tudo a respeito de fugas. Já fugiu duas vezes. A primeira, de uma prisão especial portuguesa; a segunda, da Terra Grande. Ele tem sua opinião a respeito da fuga das ilhas; Jean Castelli, também. Gravon, o cara de Toulon, vê também as coisas ao modo dele. Nenhuma dessas opiniões estão de acordo. A partir de agora, tomo a decisão de estudar a situação por mim mesmo e de não falar mais em fuga.

É duro, mas é assim. O único ponto sobre o qual eles concordam é que o jogo só interessa para ganhar dinheiro e que ele é muito perigoso. A qualquer momento, a gente pode ter que entrar numa rixa de faca com o primeiro valentão que encontrar na esquina. Os três são homens de ação e são realmente formidáveis, para a idade que têm: Louis Gravon está com 45 anos e Gardès com quase cinqüenta.

Ontem à noite, tive a oportunidade de mostrar a quase toda a nossa sala a minha maneira de ver as coisas e de agir. Um nanico de Toulouse é desafiado à faca por um cara de Nimes. O sujeito pequeno de Toulouse é alcunhado Sardinha e o corpulento de Nimes, Carneiro. Carneiro está no meio da passagem, de faca na mão:

– Ou você me paga 25 francos por partida de pôquer ou você não joga.

Sardinha responde:

– Nunca se pagou a ninguém para jogar pôquer. Por que é que você vem contra mim e não vai contra os controladores de jogo à marselhesa?

– Não tem que saber por quê. Ou você paga, ou você não joga. Ou então briga.

– Não, não vou brigar.

– Está com medo?

– Estou. Por que vou me arriscar a levar uma facada ou até morrer por causa de um valentão da sua espécie, que nunca tentou fugir? Eu sou um homem de fuga, e não estou aqui para matar nem para me deixar matar.