Para os duros, a viração é o modo de cada um se virar para conseguir dinheiro. O cozinheiro do campo vende bifes feitos com a própria carne destinada aos prisioneiros. Quando ele recebe a carne na cozinha tira mais ou menos a metade. Conforme os pedaços, prepara bifes, carne para ensopado ou para cozinhar. Uma parte é vendida aos guardas, através das esposas, a outra aos forçados que têm meios para comprar. Claro que o cozinheiro dá uma parte do que ganha ao guarda encarregado da cozinha. O primeiro prédio onde se apresenta com a mercadoria é sempre o do grupo especial, bloco A: o nosso.
Então, a viração é o cozinheiro que vende a carne e a gordura; o padeiro que vende pão fino ou pão de metro bem branco, destinado aos guardas; o açougueiro que, por sua vez, vende carne; o enfermeiro que vende injeções; o contador que recebe dinheiro para fazer com que a gente seja designado para tal ou tal cargo, ou então simplesmente para nos dispensar de uma tarefa; o jardineiro que vende hortaliças frescas e frutas; o forçado empregado no laboratório que vende resultados de análises e chega até a inventar tuberculosos, leprosos, enterites, etc; os especialistas do roubo no pátio das casas dos guardas, que vendem ovos, frangos; os moços de serviços que negociam com a dona da casa onde trabalham, e que trazem o que a gente pedir: manteiga, leite condensado, leite em pó, latas de atum ou de sardinha, queijos e, naturalmente, vinhos e bebidas alcoólicas (tanto assim, que na minha patota tem sempre uma garrafa de Ricard e cigarros ingleses ou americanos); aqueles também que têm o direito de pescar e vendem o peixe ou as lagostas.
Mas a melhor viração, a mais perigosa também, é ser controlador de jogo. A regra é que não pode nunca haver mais de três ou quatro controladores de jogo por prédio de 120 homens. Aquele que quiser cuidar dos jogos se apresenta de noite e diz: “Quero um lugar como controlador do jogo”. Alguém responde: “Não”.
– Todos dizem não?
– Todos.
– Então escolho fulano para tomar o lugar.
Aquele que foi designado entendeu. Levanta-se, vai até o centro da sala e os dois fazem um duelo de faca. Aquele que ganha fica com o lugar. Os controladores cobram 5 por cento em cada lance vitorioso.
Os jogos servem também para outras pequenas virações. Há aquele que prepara os cobertores bem esticados no chão, aquele que aluga bancos pequeninos para os jogadores que não podem sentar com as pernas cruzadas debaixo do traseiro, o vendedor de cigarros. Este coloca em cima do cobertor várias caixas de charutos vazias, nas quais ele põe cigarros franceses, ingleses, americanos e até feitos a mão. Cada um tem um preço, o jogador se serve ele mesmo e coloca cautelosamente na caixa o dinheiro correspondente ao preço marcado. Há também aquele que prepara os lampiões de querosene e toma cuidado para que eles não façam fumaça demais. São lampiões feitos com latas de leite cuja tampa foi furada para deixar passar um pavio que mergulha no querosene e que deve ser aparado com freqüência. Para os que não fumam, há bombons e bolos feitos com viração especial. Cada prédio tem um ou dois cafeteiros. O café feito à moda árabe é mantido quente a noite inteira, com dois sacos de estopa que o cobrem. De vez em quando, o cafeteiro passa pela sala e oferece café ou chocolate quente numa espécie de bule norueguês de fabricação caseira.
Finalmente, há as bugigangas. É uma espécie de viração artesanal. Alguns trabalham com a casca das tartarugas capturadas pelos pescadores. Uma tartaruga de escama possui treze chapas, cada uma com até 2 quilos. Com isso, o artista faz pulseiras, brincos, colares, piteiras, pentes e ornamentos para escovas. Cheguei a ver uma caixinha de escama clara, verdadeira maravilha. Outros trabalham com cocos, chifres de boi, de búfalo, ébano ou outras madeiras das ilhas. Alguns fazem trabalhos de marcenaria de alta precisão, sem um prego, tudo com uma chanfradura. Os mais hábeis trabalham com bronze. Sem esquecer os pintores.
Pode acontecer que vários destes talentos se juntem para realizar um só objeto. Por exemplo, um pescador pega um tubarão. Ele ajeita as mandíbulas de modo a que fiquem abertas, com os dentes bem polidos e bem retos. Um marceneiro faz o modelo reduzido de uma âncora, de madeira bem lisa e de grão fechado, suficientemente larga para que se possa fazer alguma pintura no centro. As mandíbulas são fixadas nesta âncora, em que um pintor pinta as Ilhas da Salvação cercadas pelo mar. O tema mais freqüentemente usado é o seguinte: se vê a ponta da Ilha Royale, o canal e a Ilha Saint-Joseph. No mar azul, o sol declinando lança raios fulgurantes. Na água, um barco com seis forçados em pé, peito nu, os remos verticais, e três guardas atrás, de metralhadoras na mão. Na frente, dois homens erguem um caixão donde escorrega, embrulhado num saco de farinha, o corpo de um forçado morto. Tubarões aparecem na superfície da água, esperando o corpo com a goela aberta. Embaixo, à direita do quadro, está escrito: “Enterro em Royale” com a data.
Estes trabalhos de artesanato são vendidos nas casas dos guardas. As peças mais belas são freqüentemente compradas com antecipação ou feitas a pedido. O resto é vendido a bordo dos navios que passam pelas ilhas. É o domínio dos remadores. Há também os brincalhões que pegam uma velha caneca esburacada e gravam nela: “Esta caneca pertenceu a Dreyfus – Ilha do Diabo – data”. A mesma coisa com as Colheres e as tigelas. Para os marinheiros bretões, há um truque que funciona na certa: qualquer coisa com o nome de “Sezenec”.
Esse negócio permanente traz muito dinheiro para as ilhas e os guardas têm interesse em tolerá-lo. Entregues aos seus afazeres, os homens são mais fáceis de manejar e se acostumam à nova vida.
A pederastia toma um caráter oficial. Todo mundo (inclusive o comandante) sabe que fulano é a mulher de sicrano e, quando um deles é mandado para outra ilha, providencia-se para que o outro siga logo, se é que já não foram transferidos juntos.
Entre todos estes homens, não chegam a trezentos os que pensam em fugir. Até entre os que têm condenação à prisão perpétua. O único esforço é no sentido de tentar, por todos os meios, ser desinternado e mandado para o continente, para Saint-Laurent, Kourou ou Caiena. O que só interessa aos internados temporários. Para os condenados à prisão perpétua, não há saída fora do assassinato. De fato, quando se mata alguém, eles mandam a gente a Saint-Laurent para ser julgado pelo tribunal. Mas com esse recurso para ir para lá – é necessário esclarecer -, a gente se arrisca a pegar cinco anos de reclusão disciplinar por assassinato, sem saber se se poderá aproveitar a breve permanência no quartel de Saint-Laurent (três meses no máximo) para fugir.
Pode-se tentar também o desinternamento por motivos de saúde. Quem é declarado tuberculoso é mandado ao campo para tuberculosos, chamado Novo Campo, a 80 quilômetros de Saint-Laurent.
Existem também a lepra e a enterite crônica. É relativamente fácil chegar a este resultado, mas o risco é muito grande: a coabitação num pavilhão especial, isolado, durante quase dois anos, com os doentes do tipo escolhido. De querer ser falso leproso a pegar a lepra, de ter pulmões fortes pra burro e sair tuberculoso, vai só um pequeno passo, que se dá com freqüência. Quanto à disenteria, é ainda mais difícil escapar ao contágio.
Aqui estou eu, instalado no bloco A, com os meus 120 colegas. É necessário aprender a viver nesta comunidade na qual a gente é rapidamente classificado. É necessário primeiro que todo mundo saiba que é perigoso atacar você. Uma vez temido, tem que se fazer respeitar pela maneira como se comporta em relação aos guardas, não aceitar determinados cargos, recusar certas tarefas, nunca reconhecer a autoridade dos serventes, nunca obedecer com humildade, mesmo correndo o risco de ter um incidente com o guarda. Depois de ter jogado a noite inteira, não se deve atender à chamada. O guarda da choça (este bloco é chamado “a choça”) grita: