Todos estamos na expectativa do que vai acontecer. Grandet me diz:
– É verdade que é corajoso, o pequeno, e é um homem de fuga. Pena que não se possa dizer nada.
Abro minha faca e boto debaixo da perna. Estou sentado na rede de Grandet.
– Então, medroso, você vai pagar ou parar de jogar? Responda!
Ele dá um passo na direção do Sardinha. Aí eu grito:
– Feche a matraca, Carneiro, e deixe esse sujeito em paz!
– Você está louco, Papillon? – me diz Grandet.
Sem me mexer, sempre sentado com a faca aberta debaixo da perna, a mão no cabo, digo:
– Não, não estou louco e prestem todos atenção ao que eu vou dizer. Carneiro, antes de lutar com você, o que vou fazer se você exigir, mesmo depois de eu ter falado, deixe que eu diga a você e a todos que, desde que eu cheguei a esta choça, onde somos mais de cem, todos da zona, eu me dei conta com vergonha de que a coisa mais bela, mais honrada, a única verdadeira – a fuga – não é respeitada. Qualquer homem que mostrou que é um homem de fuga, que ele tem peito para jogar a sua vida numa fuga, deve ser respeitado por todos acima de qualquer outra coisa. Quem é que diz o contrário? (Silêncio.) Em todas as leis de vocês, falta uma, fundamental: obrigação para todo mundo, não só de respeitar, mas também de ajudar, de amparar os homens de fuga. Ninguém está obrigado a ir embora e aceito que quase todos vocês tenham decidido ajeitar a sua vida aqui. Mas, se vocês não tiverem a coragem de tentar viver novamente, respeitem pelo menos os que o merecem, os homens de fuga. E, aquele que esquecer esta lei de homem, que espere graves conseqüências. Agora, Carneiro, se você ainda quiser brigar, vamos!
E pulo no meio da sala, de faca na mão. Carneiro joga a sua faca para o lado e diz:
– Você está certo, Papillon, por isso não quero brigar de faca com você, mas vamos sair na mão, para você saber que não sou um covarde.
Deixo minha faca com Grandet. Brigamos durante quase vinte minutos. No fim, com uma cabeçada bem acertada, ganho por pouco. Juntos, nas privadas, lavamos o sangue que pinga das nossas caras. Carneiro diz:
– É verdade que o pessoal se embrutece nestas ilhas. Faz quinze anos que estou aqui e não cheguei a gastar 1 000 francos para tentar ser desinternado. É uma vergonha.
Quando volto para junto dos amigos, Grandet e Galgani me xingam.
– É uma loucura provocar e insultar todo o pessoal, como você fez! Não sei por que cargas d’água ninguém pulou na passagem para pegar na faca contra você.
– Não, meus amigos, não é de espantar. Qualquer homem do nosso meio, quando vê que alguém está realmente certo, concorda com ele.
– Bom – diz Galgani. – Mas, sabe, é melhor não brincar demais com este vulcão.
A noite toda, homens vieram falar comigo. Aproximam-se de mim como por acaso, falam de qualquer coisa e antes de se retirar dizem:
– Estou de acordo com o que você disse, Papi.
Este incidente fortaleceu a minha situação junto aos homens.
A partir de então, os meus colegas me consideram provavelmente como um homem do meio deles, mas me vêem como uma pessoa que não se dobra diante das coisas sem analisá-las e discuti-las. Me dou conta de que, quando sou eu o controlador dos jogos, há menos brigas. E percebo que, quando dou uma ordem, obedecem logo.
O controlador do jogo, como já disse, retira 5 por cento em cada lance vitorioso. Fica sentado num banco, encostado na parede, para se proteger contra um assassino sempre possível. Um cobertor nos joelhos esconde uma faca aberta. Em volta dele, em círculo, trinta, quarenta e às vezes até cinqüenta jogadores de todas as regiões da França, muitos estrangeiros, inclusive árabes. O jogo é muito fácil: há o banqueiro e o cortador. Toda vez que o banqueiro perde, ele passa as cartas para o vizinho. Joga-se com 52 cartas. O cortador divide o maço e guarda uma carta escondida. O banqueiro tira uma carta e descobre. Aí fazem as apostas. Joga-se tanto para o corte, como para a banca. Quando as apostas são depositadas em montinhos, começa-se a tirar as cartas uma por uma. A carta que tem o mesmo valor que uma das duas em cima da mesa perde. Por exemplo, o cortador escondeu uma dama e o banqueiro tira um cinco. Se sair uma dama antes de um ‘5, o corte perde. Se for o contrário e sair um 5, é a banca que perde. O controlador do jogo deve conhecer a importância de cada aposta e lembrar-se de quem é cortador ou banqueiro, para saber para quem vai o dinheiro. Nada fácil. £ necessário defender os fracos contra os fortes, que estão sempre tentando abusar do prestígio. Quando o controlador de jogos toma uma decisão a respeito de um caso duvidoso, essa decisão tem que ser aceita sem piscar.
Durante a noite mataram um italiano chamado Carlino. Vivia com um rapaz que lhe servia de mulher. Os dois trabalhavam num jardim. Ele devia saber que sua vida estava em perigo, já que, quando dormia, o rapaz ficava de vigia, e vice-versa. Debaixo da rede, eles tinham colocado latas vazias, para que ninguém pudesse se aproximar deles sem fazer barulho. E assim mesmo foi assassinado. Ao seu grito seguiu-se imediatamente um barulhão horrível de latas vazias chutadas pelo assassino.
Grandet dirigia uma partida de marselhesa, com mais de trinta jogadores em volta dele. Eu estava batendo papo perto do jogo. O grito e o barulho das latas vazias interromperam o jogo. Todos se levantam e perguntam o que foi que aconteceu. O jovem amigo de Carlino não viu nada e Carlino deixou de respirar. O chefe da choça pergunta se deve chamar os guardas. Não. Dá para avisá-los amanhã na chamada; já que está morto, não há mais nada a fazer por ele. Grandet fala:
– Ninguém viu nada. Você também não, menino – diz ao colega de Carlino. – Amanhã, quando acordar, você se dará conta de que ele está morto.
E pronto! Vamos, o jogo continua. Os jogadores, como se nada tivesse acontecido, recomeçam a grita: “Cortador! não, banqueiro!”, etc.
Aguardo com impaciência para saber o que acontece quando os guardas descobrem um assassinato. Às 5 e meia, primeiro toque de sino. Às 6 horas, segundo toque e café. Às 6 e meia, terceiro toque e saímos para a chamada, como todo dia. Mas hoje é diferente. No segundo toque, o chefe da choça diz ao guarda que acompanha o distribuidor de café:
– Chefe, mataram um homem.
– Quem é?
– Carlino.
– Está bem.
Dez minutos mais tarde, chegam seis guardas:
– Onde está o morto?
– Aí.
Eles notam o punhal fincado nas costas de Carlino através da lona. A arma é removida.
– A maca. Podem levar ele.
Dois homens o levam numa maca. O dia desponta. O terceiro sino toca. Sempre com a faca ensangüentada na mão, o guarda-chefe manda:
– Todo mundo fora, em fila, para a chamada. Hoje não aceitamos doentes deitados.
Todo o pessoal sai. Na chamada da manhã, os comandantes e os guardas-chefes estão sempre presentes. Fazem a chamada. Chegando a Carlino, o chefe da choça responde:
– Morto durante a noite, foi levado para o necrotério.
– Está bem – diz o guarda que faz a chamada.
Depois de todo mundo ter respondido presente, o chefe do campo levanta a faca para cima e pergunta:
– Alguém conhece esta faca?
Ninguém responde.
– Alguém viu o assassino?
Silêncio absoluto.
– Então, ninguém sabe de nada, como de costume. Passem na minha frente, com as mãos estendidas, e depois cada um vai para o trabalho. É sempre a mesma coisa, meu comandante, não dá para saber quem fez o negócio.
– Assunto arquivado – diz o comandante. – Guarde a faca, prenda nela uma ficha indicando que foi usada para matar Carlino.
É só. Entro na choça e deito para dormir, pois não preguei o olho a noite toda. Quase adormecendo, penso que um forçado não é grande coisa. Mesmo se foi assassinado covardemente, ninguém quer se chatear para saber. Para a administração um forçado não é absolutamente nada. Menos que um cachorro.