Escondido atrás de uma árvore grande, na beirada mesmo do caminho, espero, com o facão preparado, que ele chegue perto de mim. Na hora em que ele passa na frente da árvore, caio em cima dele. Minha mão direita agarra no ar o braço que segura o fuzil e, torcendo-o, obrigo-o a largá-lo. “Não me mate! Tenha dó de mim, pelo amor de Deus!” Está de pé, com a ponta da minha faca encostada do lado esquerdo de seu pescoço. Abaixo e agarro o fuzil, uma velha espingarda de um cano só, mas que deve estar carregada de pólvora e chumbo até o pescoço. Armo o gatilho e, afastando-me 2 metros, ordeno:
– Ponha de lado o fardo, deixe-o cair. Não tente fugir correndo, porque eu o mato.
O pobre negro, aterrorizado, obedece. Depois olha para mim.
– O senhor é um foragido?
– Sou.
– Que é que o senhor quer? Tudo que eu tenho, pode pegar. Mas, por favor, não me mate, tenho cinco filhos. Pelo amor de Deus, me deixe vivo.
– Cale a boca. Como é que você se chama?
– Jean.
– Aonde vai?
– Levar mantimentos e remédios aos meus dois irmãos, que estão cortando lenha no mato.
– De onde você vem?
– De Kourou.
– Você é da aldeia?
– Nasci lá.
– Conhece Inini?
– Conheço, às vezes faço uns biscates com os chineses do presídio.
– Está vendo isso?
– O que é?
– Uma nota de 500 francos. Você escolhe: ou faz o que eu mando e eu lhe dou de presente esses 500 francos e devolvo o fuzil; ou você recusa, ou tenta me enganar, e então eu o mato. Escolha.
– O que é que eu tenho que fazer? Vou fazer tudo que o senhor mandar, mesmo sem ganhar nada.
– Você precisa me levar sem nenhum risco até perto do presídio de Inini. Depois que eu tiver entrado em contato com um chinês, você pode partir. Entendido?
– Está certo.
– Não tente me enganar, senão você é um homem morto.
– Não, eu juro que vou ajudar o senhor, honestamente.
Ele tem leite condensado. Tira seis latas e dá para mim, e também um pão de 1 quilo e toicinho defumado.
– Esconda seu saco no mato, pode pegar mais tarde. Olhe, aqui está uma marca na árvore que eu fiz com o facão.
Bebo uma lata de leite. Ele me dá também uma calça comprida novinha, um macacão de mecânico. Visto-o, sem largar a espingarda.
– De agora em diante, Jean, tome cuidado para ninguém ver a gente, porque, se alguém nos descobrir, a culpa é sua e, então, pior para você.
Jean sabe andar no mato melhor do que eu e custo a ir atrás dele, tão facilmente ele se desvia dos galhos e dos cipós. Esse desgraçado anda completamente à vontade no mato.
– O senhor veja, em Kourou ficamos sabendo que dois condenados fugiram das ilhas. Também quero ser honesto com o senhor: vai ser muito perigoso quando a gente passar perto do presídio de Kourou.
– Você parece bom e honesto, Jean. Espero não estar me enganando. Como você acha que é melhor para a gente ir a Inini? Pense que a minha segurança é a sua vida, porque, se os guardas ou os caçadores de homens me apanharem, vou ser obrigado a matar você.
– Como devo chamar o senhor?
– Papillon.
– Bom, Sr. Papillon, precisamos entrar completamente dentro do mato e passar bem longe de Kourou. Garanto que eu levo o senhor até Inini pela floresta.
– Confio em você. Vá pelo caminho que você achar mais seguro.
No interior da floresta, andamos com muita cautela, mas, depois que deixamos as proximidades da picada, percebo que o negro está mais calmo. Não sua mais tanto e sua fisionomia está menos contraída; ele se sente como que tranqüilizado.
– Parece que você tem menos medo agora, Jean.
– Sim senhor, Sr. Papillon. Perto do caminho era muito perigoso para o senhor, e então era perigoso para mim também.
Avançamos rapidamente. Esse preto é inteligente, nunca se afasta mais de 3 ou 4 metros de mim.
– Pare, quero fazer um cigarro.
– Tome um maço de Gauloises.
– Obrigado, Jean, você é um bom sujeito.
– Sou mesmo, muito bom. Veja o senhor, sou católico e sofro de ver como vocês presos são tratados pelos guardas brancos.
– Você viu muitos? Onde?
– No presídio estrangeiro de Kourou. Dá dó de ver eles morrendo aos poucos, destruídos por este trabalho de cortar a lenha, pela febre e a disenteria. Nas ilhas, vocês estão melhor. É a primeira vez que eu vejo um condenado como o senhor em perfeita saúde.
– É, a gente está melhor nas ilhas.
Sentamos um pouco num grande galho de árvore. Ofereço-lhe uma de suas latas de leite, Ele recusa e prefere mastigar a polpa do coco.
– Sua mulher é jovem?
– É, tem 32 anos. Eu tenho quarenta. Temos cinco filhos, três meninas e dois meninos.
– Você ganha bem a vida?
– Com o pau-rosa, a gente se defende mais ou menos e minha mulher lava e passa a roupa para os guardas. Isso ajuda um pouquinho. Somos muito pobres, mas dá para matar a fome e os meninos vão para a escola. Eles têm sempre sapatos para pôr.
Pobre negro que acha que, porque seus filhos têm sapatos, está tudo bom. É quase do meu tamanho, seu rosto de negro não tem nada de antipático. Pelo contrário, seus olhos mostram claramente que é um homem dotado de sentimentos, trabalhador, sadio, bom pai de família, bom marido, bom cristão.
– E o senhor, Papillon?
– Eu, Jean, estou tentando tornar a viver. Estou enterrado vivo há dez anos, nunca paro de fugir para chegar um dia a ser como você, livre com uma mulher e filhos, sem fazer mal a ninguém nem com o pensamento. Você mesmo disse, esta prisão é podre e um homem de respeito deve fugir desta sujeira.
– Vou ajudar honestamente o senhor a conseguir isso. Vamos andando.
Com um maravilhoso senso de orientação, sem nunca hesitar no seu caminho, Jean me leva diretamente aos arredores do presídio dos chineses, onde nós chegamos quando a noite já caiu há umas duas horas. De longe ouvem-se uns disparos, não se vê luz alguma. Jean explica que, para chegar mesmo perto do presídio, precisamos evitar um ou dois postos avançados. Resolvemos parar para passar a noite.
Estou morto de cansaço, tenho medo de pegar no sono. E se eu estiver enganado a respeito do negro? Se for um farsante e me tomar a espingarda enquanto eu estiver dormindo e me matar? Ele ganharia em dobro me matando: livra-se do perigo que represento para ele e recebe uma recompensa por matar um fujão.
É, ele é muito inteligente. Sem falar, sem esperar, deita para dormir. Tenho ainda minha corrente e o parafuso. Tenho receio de prendê-lo, porque acho que ele pode desaparafusá-lo tão bem quanto eu e, agindo com precaução, se eu estiver dormindo, não vou perceber nada. Logo, vou tentar não dormir. Tenho um maço inteiro de Gauloises. Vou fazer tudo para não dormir. Não posso confiar nesse homem, que, além de tudo, é honesto, e naturalmente me considera um bandido.
A noite é completamente negra. Ele está deitado a 2 metros de mim, eu só enxergo o branco da planta de seus pés nus. A floresta tem os ruídos característicos da noite: ouço sempre o berro do macaco de papo grande, grito rouco e possante que se ouve a quilômetros. É muito importante, pois se for regular é porque seu bando pode comer ou dormir tranqüilo. Não revela terror nem perigo, portanto não há animais ferozes nem homens fazendo a ronda.
Completamente tenso, agüento sem muito esforço o sono, ajudado por algumas queimaduras de cigarros e sobretudo por uma nuvem de mosquitos absolutamente decididos a me sugar todo o sangue. Poderia livrar-me deles passando saliva misturada com fumo. Se passar este suco de nicotina, fico livre dos mosquitos, mas sem eles sinto que vou pegar no sono. Só posso esperar que esses mosquitos não sejam portadores de malária ou de febre amarela.
Aqui estou eu, saído, provisoriamente talvez, do caminho da podridão. Quando entrei nele, tinha 25 anos, em 1931. Estamos em 1941. São dez anos. Foi em 1932 que Pradel, o promotor sem coração, conseguiu, por meio de um requisitório impiedoso e desumano, jogar-me jovem e forte nesse poço que é a penitenciária; fossa cheia de líquido visguento, que deveria me dissolver lentamente e me fazer desaparecer. Consegui, enfim, a primeira parte da fuga. Saí do fundo desse poço e estou na boca. Preciso mobilizar toda a minha energia e a minha inteligência para ganhar a segunda parte.