Seguimos pela beira da estrada, porque a lua surgiu e está bastante claro para enxergar a uns 50 metros. Chegamos a uma ponte de madeira e ele diz:
– Desça para debaixo da ponte. Durma lá, virei procurar você amanhã de manhã.
Apertamos as mãos e eles partem. Andam sem se esconder. Se forem apanhados, dirão que foram verificar umas armadilhas colocadas no mato durante o dia. Jean diz:
– Papillon, você não dorme aqui. Você dorme no mato, eu durmo aqui. Quando ele vier, eu chamo você.
– Tá.
Volto para o mato e adormeço feliz, depois de fumar alguns cigarros, a barriga cheia de sopa gostosa.
Van Hue chega antes do nascer do dia. Para ganhar tempo, seguimos pela estrada até amanhecer. Caminhamos depressa durante mais de quarenta minutos. De repente, o dia desponta e ouve-se ao longe o ruído de um carro que avança sobre a linha. Entramos no meio das árvores.
– Adeus, Jean, obrigado e boa sorte. Que Deus o abençoe, você e sua família.
Insisto para que ele aceite os 500 francos. Explicou-me, no caso de não dar certo a coisa com Cuic-Cuic, como chegar até a sua aldeia contorná-la e voltar pelo caminho onde eu o encontrei. Ele precisa passar por lá duas vezes por semana. Aperto a mão deste nobre negro da Guiana e ele pula para a estrada.
– Para a frente – diz Van Hue, penetrando no mato.
Sem hesitar, orienta-se e nós avançamos bastante depressa, porque a floresta não é impenetrável. Ele evita cortar com seu facão os galhos ou os cipós que o atrapalham; prefere afastá-los.
Em menos de três horas, estamos diante de um charco de lama. Nenúfares em flor e grandes folhas verdes estão presos no barro. Seguimos pela borda do banco de lama.
– Cuidado para não escorregar, senão você desaparece sem nenhuma esperança de sair – adverte Van Hue, que acaba de me ver escorregar.
– Vá indo, eu sigo você e vou prestar mais atenção.
Na nossa frente, uma ilhota, a uns 150 metros. Do meio da minúscula ilha sai um pouco de fumaça. Deve ser da carvoaria. Vejo um jacaré dentro do barro, só aparecem os olhos. Do que será que se alimenta nesse barro o crocodilo?
Depois de andar mais de 1 quilômetro pela margem dessa espécie de lago de lama, Van Hue pára e começa a cantar em chinês aos berros. Um sujeito se aproxima da borda da ilha. É baixo e veste somente um short. Os dois chinas conversam. Demoram e começo a perder a paciência, quando, finalmente, eles param.
– Não vamos lá – diz Van Hue.
Sigo-o, voltamos pelo mesmo caminho.
– Está tudo bem, é um amigo de Cuic-Cuic. Cuic-Cuic foi caçar, não vai demorar para voltar, precisamos esperar aqui.
Sentamos. Menos de uma hora depois, Cuic-Cuic chega. É um Sujeitinho seco, amarelo, com dentes muito polidos, olhos inteligentes e francos.
– Você é amigo de meu irmão Chang?
– Sou.
– Está bem. Você pode partir,. Van Hue.
– Obrigado – diz Van Hue.
– Tome, leve essa perdiz.
– Não, obrigado.
Aperta minha mão e vai embora.
Cuic-Cuic me leva atrás de um porco que anda à sua frente. Ele o segue de perto.
– Preste bem atenção, Papillon. O menor passo em falso e você afunda. Se acontecer um acidente, não podemos nos ajudar um ao outro, porque então não é um, mas dois que desaparecem. O caminho para atravessar nunca é o mesmo porque a lama se mexe, mas o porco encontra sempre uma passagem. Uma vez tive que esperar dois dias para passar.
De fato, o porco preto fareja e rapidamente se embrenha na lama. O chinês fala com ele na sua língua. Fico desconcertado de ver esse animalzinho que lhe obedece como um cão. Cuic-Cuic observa e eu arregalo os olhos, assombrado. O porco chega do outro lado sem nunca afundar mais do que alguns centímetros. Rapidamente, meu novo amigo se embrenha por sua vez e diz:
– Ponha os pés nas marcas dos meus. Precisa andar bem depressa, porque os buracos que o porco deixou se apagam imediatamente.
Atravessamos sem dificuldade. Nunca cheguei a ficar com a lama acima da barriga da perna e, mesmo assim, só no final.
O porco fez dois desvios compridos, o que nos obrigou a andar em cima dessa crosta firme por mais de 200 metros. O suor escorre de todos os lados. Não posso dizer que sentia somente medo, estava realmente aterrorizado.
Na primeira parte do trajeto, perguntava-me se meu destino queria que eu morresse como Sylvain. Tornava a ver o coitado no seu último instante e, embora estivesse bem acordado, enxergava seu corpo, mas seu rosto parecia ter os meus traços. Que impressão me produziu essa passagem! Não vai ser fácil esquecê-la.
– Dê-me a mão.
Cuic-Cuic, o Sujeitinho que é só pele e osso, ajuda-me a pular na beirada.
– Bom, meu caro, não vai ser aqui que os caçadores de homens vão procurar a gente.
– Ah, quanto a isso, pode ficar sossegado!
Penetramos na ilhota. Um cheiro de gás carbônico me pega a garganta. Tusso. É a fumaça das duas carvoarias que queimam. Aqui não tem perigo de que venham os mosquitos. A sota-vento, envolvida na fumaça, uma choça, um casebre com telhado de folhas e as paredes também igualmente de folhas, trançadas como esteiras. Uma porta e, na frente dela, o pequeno chinês que vi antes de Cuic-Cuic.
– Bom dia, sinhô.
– Fale francês com ele e não patoá, é um amigo de meu irmão.
O china, um homem de tamanho reduzido, me examina da cabeça aos pés. Satisfeito com sua inspeção, me estende a mão, sorrindo com uma boca desdentada.
– Entre, sente.
É limpo o único cômodo desse casebre. Alguma coisa cozinha no fogo, num caldeirão. Só existe uma cama feita de galhos de árvores, a 1 metro do chão pelo menos.
– Ajude-me a fazer um lugar para ele dormir essa noite.
– Tá bom, Cuic-Cuic.
Em menos de meia hora, meu catre está pronto. Os dois chineses põem a mesa e nós comemos uma sopa deliciosa, depois arroz com carne e cebolas.
O sujeito, amigo de Cuic-Cuic, e aquele que vende o carvão de lenha. Não mora na ilha, por isso, quando escurece, ficamos sozinhos, Cuic-Cuic e eu.
– Pois é, roubei todos os patos do chefe do presídio e é por isso que fugi.
Com os nossos rostos iluminados por alguns instantes pelas chamas do pequeno fogo, sentamos um em frente ao outro. Examinamo-nos e, falando, cada um de nós procura conhecer e compreender o outro.
O rosto de Cuic-Cuic não é bem amarelo. Com o sol, seu amarelo natural ficou cor de cobre. Seus olhos bastante oblíquos, de um preto brilhante, olham bem de frente quando ele fala. Fuma uns cigarros compridos feitos por ele mesmo com folhas de fumo preto.
Eu continuo fumando um cigarro enrolado num papel de arroz que o maneta trouxe.
– Então tive que fugir, porque o chefe, o dono dos patos, queria me matar, faz três meses. O azar é que perdi no jogo, não só o dinheiro dos patos, mas também o do carvão das duas carvoarias.
– Onde é que você joga?
– No mato. Toda noite, tem o jogo dos chineses do presídio de Inini e dos libertos que vêm de Cascade.
– Você resolveu embarcar?
– Mal consigo agüentar a espera e, quando vendi o carvão de lenha, pensei em comprar um barco, em encontrar um sujeito que saiba lidar com ele e que queira ir comigo. Mas, em três semanas, com a venda do carvão, a gente vai poder comprar o barco e ir embora, já que você sabe dirigir.
– Eu tenho algum dinheiro, Cuic-Cuic. Não precisamos esperar a venda do carvão para comprar o barco.
– Então está bom. Existe um bom barco para vender por 1500 francos. É um negro, cortador de lenha, que vende.
– Bom, você já viu?
– Vi.
– Quero ver também.
– Amanhã vou ver Chocolat, é o nome dele. Conte-me a sua fuga, Papillon. Achava que era impossível fugir da Ilha do Diabo. por que é que meu irmão não saiu com você?
Falo da fuga, da onda Lisette, da morte de Sylvain.