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– Entendi por que Chang não quis partir com você. É mesmo arriscado. Você é um homem privilegiado pela sorte, é por isso que conseguiu chegar vivo até aqui. Fico contente,

Há mais de três horas que eu e Cuic-Cuic conversamos. Dormimos cedo, porque ele quer ir de madrugada procurar Chocolat. Depois de colocar um galho enorme no fogo para durar a noite toda, deitamos. A fumaça me faz tossir e me fecha a garganta, mas tem uma vantagem: nem um mosquito.

Esticado no meu catre, coberto com uma boa coberta, bem quentinho, fecho os olhos. Não consigo pegar no sono. Estou excitado demais. É, a fuga está indo bem. Se o barco for bom, antes de oito dias estou no mar. Cuic-Cuic é baixo, seco, mas deve ter uma força fora do comum e uma resistência a toda prova. Com certeza é honesto e correto com seus amigos, mas deve ser também muito cruel com seus inimigos. É difícil ler o rosto de um asiático, não exprime nada. Todavia, seus olhos depõem a seu favor.

Adormeço e sonho com um mar banhado de sol, meu barco vencendo alegremente as ondas, no caminho da liberdade.

– Quer café ou chá?

– O que é que você está tomando?

– Chá.

– Quero chá.

O dia está nascendo, o fogo ficou aceso desde ontem, a água ferve numa panela. Um galo canta seu alegre cocorocó. Os pássaros não cantam à nossa volta, com certeza a fumaça das carvoarias os espanta. O porco preto está deitado embaixo da cama de Cuic-Cuic. Deve ser um preguiçoso, porque continua dormindo. Uns biscoitos feitos de farinha de arroz assam na brasa. Depois de me servir de chá, meu amigo corta pela metade um biscoito, besunta-o de margarina e dá para mim. Comemos bastante. Como três biscoitos bem assados.

– Vou sair, acompanhe-me. Se alguém gritar ou assobiar, não responda. Não tem perigo, ninguém consegue vir aqui. Mas, se você aparecer na beira da lama, podem matar você com um tiro de fuzil.

O porco se levanta aos gritos de seu dono. Come e bebe, depois sai, nós vamos atrás dele. Vai direto pela areia adentro. Bastante longe do lugar de onde viemos ontem, desce. Depois de andar uns 10 metros, volta. Não gostou da passagem. Depois de três tentativas, consegue passar. Cuic-Cuic, imediatamente e sem susto, percorre a distância até a terra firme.

Cuic-Cuic vai voltar só à noitinha. Comi sozinho a sopa que ele colocou no fogo. Depois de apanhar oito ovos no galinheiro, fiz uma pequena omeleta de três ovos com margarina. O vento mudou de direção e a fumaça das duas carvoarias na frente da cabana se dirige para o outro lado. Ao abrigo da chuva que caiu à tarde, deitado calmamente na minha cama de madeira, não fui incomodado pelo gás carbônico.

De manhã, dei uma volta na ilha. Quase no centro, há uma clareira bastante grande. As árvores caídas e a lenha cortada indicam que é dali que Cuic-Cuic tira a lenha para fazer carvão. Vejo também um monte enorme de argila branca, de onde ele tira certamente a terra necessária para cobrir a lenha, para que ela se queime sem chama. As galinhas vão ciscar na clareira. Um rato enorme foge debaixo dos meus pés e, uns metros mais além, encontro uma cobra morta de uns 2 metros de comprimento. Sem dúvida foi o rato que acabou de matá-la.

Durante todo esse dia passado sozinho na ilhota, fiz uma série de descobertas. Por exemplo, encontrei uma família de tamanduás. A mãe e três filhotes. Um enorme formigueiro estava em revolução à volta deles. Uns dez macacos minúsculos pulam de árvore em árvore na clareira. À minha chegada, os sagüis gritam de partir o coração.

Cuic-Cuic volta à tardinha.

– Não vi Chocolat nem o barco. Ele teve que procurar mantimentos em Cascade, a aldeia onde fica a casa dele. Você comeu bem?

– Comi.

– Quer mais?

– Não.

– Trouxe dois pacotes de fumo pardo, é fumo grosso, de soldado, mas só tinha esse.

– Obrigado, tanto faz. Quando Chocolat sai, quanto tempo fica na aldeia?

– Dois ou três dias, mas eu vou amanhã mesmo e pretendo insistir todos os dias, porque não sei quando ele foi.

No dia seguinte, cai uma chuva torrencial. Mesmo assim, Cuic-Cuic parte, nu em pêlo. Carrega suas roupas debaixo do braço, embrulhadas num plástico. Não o acompanho.

– Não vale a pena você se molhar – ele me diz.

A chuva acabou. Pelo sol, deve ser entre 10 e 11 horas. Uma das duas carvoarias, a segunda, desmoronou com a violência da chuva. Aproximo-me para ver o desastre. O dilúvio não conseguiu apagar completamente a lenha. Ainda sai fumaça do monte disforme. De repente, esfrego os olhos antes de olhar de novo, tão inesperado é o que estou enxergando: cinco sapatos se destacam da carvoaria. Percebo em seguida que estes sapatos estão, cada um, acompanhados de um pé e uma perna. Então, há pelo menos três homens assando dentro da carvoaria. Nem preciso descrever minha primeira reação: dá um certo arrepio nas costas descobrir uma coisa dessas. Debruço-me e, empurrando com o pé um pouco de carvão de lenha meio calcinado, descubro o sexto pé.

O Cuic-Cuic é fogo: ele incinera em série os caras que ele liquida. Fico tão impressionado, que logo me afasto da carvoaria e vou até a clareira para apanhar um pouco de sol. Preciso de calor. Pois é, nessa temperatura sufocante, de repente sinto frio e tenho necessidade de um raio do bom sol dos trópicos.

Ao ler isso, vão pensar que é ilógico, que eu devia suar depois de uma descoberta semelhante. Bom, não suo: estou enregelado de frio, congelado moral e fisicamente. Só muito tempo depois, mais de uma hora, as gotas de suor começam a escorrer da minha testa, porque, quanto mais penso, mais me convenço de que, depois de falar para ele que eu tinha bastante dinheiro no canudo, é um milagre se ainda estou vivo. Ou será que ele está me guardando para me colocar numa terceira carvoaria?

Lembro-me de que seu irmão Chang me contou que ele foi condenado por pirataria e assassinato a bordo de um junco. Quando eles atacavam um navio para pilhá-lo, suprimiam toda a família, em nome de razões políticas. São sujeitos já acostumados aos assassinatos em série. Por outro lado, eu estou prisioneiro aqui. É uma situação tremenda.

Vejamos, vamos fazer os cálculos. Se eu matar Cuic-Cuic na ilhota e o colocar também na carvoaria, ninguém vai saber de nada.

Mas o porco não vai me obedecer, não entende nem francês, esse desgraçado desse porco manso. Então, nada de sair da ilha. Se eu capturar o china, ele vai me obedecer, mas, depois de obrigá-lo a me tirar da ilha, vou precisar matá-lo em terra firme. Se eu o jogar dentro da areia, vai desaparecer, mas deve haver uma razão para ele queimar os caras e não jogá-los dentro da areia como seria mais fácil. Pelos guardas, nem me incomodo; mas, se os chineses amigos dele descobrem que o matei, vão se transformar em caçadores de homens e, com seu conhecimento do mato, vai ser fogo ter os caras na traseira.

Cuic-Cuic tem só um fuzil de um cano, desses que são carregados pela boca. Nunca larga ele, nem para fazer a sopa. Dorme com ele e o carrega até quando se afasta da cabana para ir à latrina. Preciso estar sempre com a minha faca pronta, mas preciso também dormir. Bom, e eu que o escolhi como sócio para fugir!

Não comi o dia todo. Ainda não tomei uma decisão, quando ouço cantarem. É Cuic-Cuic que vem voltando. Escondido atrás dos galhos, vejo-o chegar. Carrega um pacote na cabeça e só quando ele está bem perto da margem é que eu apareço. Sorrindo, ele me passa o fardo enrolado num saco de farinha, pula ao meu lado e rápido dirige-se para o casebre. Vou atrás dele.

– Boas notícias, Papillon, Chocolat voltou. Tem ainda o barco. Diz que pode levar uma carga de mais de 500 quilos sem afundar. O que você está levando aí são sacos de farinha para fazer a vela e um cutelo. É a primeira carga. Amanha vamos levar os outros, porque você irá comigo para ver se o barco serve.

Tudo isso, Cuic-Cuic explica sem se virar. Caminhamos enfileirados: primeiro o porco, depois ele e em seguida eu. Penso rapidamente que ele não parece ter planejado me torrar na carvoaria, já que amanhã vai me levar para ver o barco e começa a fazer despesas para a fuga. Comprou até os sacos de farinha.