– Olhe, uma carvoaria despencou. Foi a chuva, sem dúvida. Caiu um tamanho pé-d’água, que não é de espantar.
Não vai nem ver a carvoaria e entra direto na cabana. Não sei mais o que dizer, nem que decisão tomar. Fazer de conta que não vi nada é pouco aceitável. Pode parecer estranho que durante o dia todo eu não tenha chegado perto da carvoaria, que fica a 25 metros da cabana.
– Você deixou apagar o fogo?
– Deixei, não reparei.
– Mas você não comeu?
– Não, não estava com fome.
– Está doente?
– Não.
– Então, por que é que não comeu a sopa?
– Cuic-Cuic, sente-se, preciso falar com você.
– Espere eu acender o fogo.
– Não. Quero falar com você já, enquanto ainda é dia.
– O que que tem?
– Tem que a carvoaria despencou e, quando isso aconteceu, apareceram três homens que você estava assando lá dentro. Quero uma explicação.
– Ah, é por isso que eu estava achando você esquisito!
E, sem se emocionar nem um pouquinho, olha bem para mim:
– Depois desta descoberta, você não ficou sossegado. Eu compreendo você, é natural. Tive até muita sorte de você não ter me esfaqueado pelas costas. Escute, Papillon, esses três sujeitos eram três caçadores de homens. Bom, faz uma semana, ou dez dias, eu vendi uma boa quantidade de carvão para Chocolat. O chinês que você viu me ajudou a tirar os sacos da ilha. É uma história complicada: com uma corda de mais de 200 metros, puxamos uma fileira de sacos, que deslizam na lama. Enfim, daí até um riacho onde estava a barca de Chocolat, deixamos um bocado de marcas. Uns sacos meio arrebentados deixaram cair uns pedaços de carvão. Foi então que o primeiro caçador de homens começou a rodear. Pelos gritos dos bichos, percebi que tinha alguém no mato. Vi o sujeito sem que ele me visse. Atravessar do lado oposto onde ele estava e surpreendê-lo por trás não foi difícil. Morreu sem mesmo ver quem o matou. Eu sabia que a lama devolve os cadáveres, que, depois de afundar, voltam à superfície no fim de alguns dias; então, eu o trouxe para cá e o botei na carvoaria.
– E os outros dois?
– Foi três dias antes de você chegar. A noite era escuríssima e silenciosa, o que é muito raro na floresta. Aqueles dois estavam em volta do brejo desde o anoitecer. Um deles, quando a fumaça ia na sua direção, tinha às vezes acessos de tosse. Foi esse ruído de tosse que me anunciou a presença dele. Antes do amanhecer, tentei passar pela lama do lado oposto ao local onde eu tinha percebido a tosse. Para encurtar a história, vou lhe dizer que degolei o primeiro caçador de homens. Não teve tempo nem de gritar. O outro, armado com um fuzil de caça, estava tão empenhado em espiar através da vegetação da ilha para ver o que que se passava lá dentro, que se descobriu. Derrubei ele com um tiro de espingarda e, como não estava morto, enterrei minha faca no coração dele. São esses, Papillon, os três caras que você descobriu na carvoaria. Eram dois árabes e um francês. Atravessar a lama com um deles nas costas não foi fácil. Tive que dar duas viagens porque pesavam demais. Enfim, consegui colocá-los na carvoaria.
– Foi isso mesmo que aconteceu?
– Foi, Papillon, juro.
– Por que é que você não botou eles na areia?
– Já falei para você, a lama devolve os cadáveres. Às vezes caem lá dentro uns veados grandes e uma semana depois sobem à superfície. A gente sente o cheiro de carne podre até que os corvos os devoram. Logo, seus gritos e vôos chamam a atenção dos curiosos, Papillon, eu juro, comigo você não precisa ter medo de nada. Tome, para você ter mais certeza, pegue o fuzil se quiser. Pode ficar com ele.
Tenho uma vontade louca de aceitar a arma, mas me domino e o mais naturalmente possível digo:
– Não, Cuic-Cuic. Se estou aqui, é porque me sinto com um amigo, em segurança. Amanhã, você precisa queimar os sapatos dos homens, pois não sabemos o que pode acontecer quando a gente for embora daqui. Não estou com vontade de ser acusado, mesmo ausente, de três assassinatos.
– Tá, vou tornar a queimá-los amanhã. Mas fique sossegado, nunca ninguém vai botar os pés nesta ilha. É impossível passar sem afundar.
– E com uma balsa de borracha?
– Não tinha pensado nisso.
– Se alguém trouxer a polícia até aqui e eles encasquetarem de vir até a ilha, acredite que com uma balsa eles vão poder passar, e por isso que precisamos sair o mais rápido possível.
– De acordo. Amanhã vamos acender de novo a carvoaria, que aliás não está nem apagada. Só é preciso fazer duas chaminés de ventilação.
– Boa noite, Cuic-Cuic.
– Boa noite, Papillon. E repito, durma bem, pode confiar em mim.
Puxo uma coberta até o queixo, aproveito o calor que ela me dá. Acendo um cigarro. Menos de dez minutos depois, Cuic-Cuic está roncando. Seu porco ao seu lado respira com força. O fogo não tem mais chamas, mas o tronco da árvore – cheio de brasas que ficam avermelhadas quando a brisa penetra no casebre – dá uma impressão de paz e de serenidade. Saboreio esse conforto e adormeço com um pensamento: ou amanhã eu acordo e então tudo irá bem entre Cuic-Cuic e eu, ou o chinês é um artista melhor do que Sacha Guitry para esconder suas intenções e contar histórias, e então não verei mais o sol, porque sei coisas demais a seu respeito e isso pode incomodá-lo.
Com uma caneca de café na mão, o especialista em assassinatos em série me acorda e, como se nada tivesse acontecido, deseja-me um bom dia com um sorriso magnificamente cordial. O dia desponta.
– Tome, tome o seu café, pegue uma bolacha, já está com margarina.
Depois de comer e beber, me lavo lá fora, apanhando a água dentro de um tonel que está sempre cheio.
– Você quer me ajudar, Papillon?
– Quero – digo sem maiores perguntas.
Puxamos pelos pés os cadáveres meio queimados. Reparo, sem dizer nada, que os três têm a barriga aberta: o simpático china deve ter procurado nas tripas deles se tinham algum canudo. Será que eram mesmo caçadores de homens? Por que não seriam caçadores de borboletas ou de animais? Ele os matou para se defender ou para roubá-los? Enfim, chega de pensar nisso. São de novo colocados num buraco da carvoaria, bem cobertos de lenha e de argila. Duas chaminés de ventilação são abertas e a carvoaria volta às suas duas funções: fazer carvão de lenha e transformar em cinzas os defuntos.
– Vamos andando, Papillon.
O porquinho encontra uma passagem em pouco tempo. Como carneirinhos, atravessamos a lama. Sinto uma angústia insuportável na hora de me arriscar a passar por cima dela. O afundamento de Sylvain deixou em mim uma impressão tão forte, que não posso me aventurar despreocupadamente. Enfim, pingando suor frio, caminho atrás de Cuic-Cuic. Cada um dos meus pés pisa na marca dos seus. Não há problema: se ele passa, devo passar.
Mais de duas horas de caminhada nos levam ao lugar onde Chocolat corta lenha. Não encontramos ninguém na floresta e portanto não precisamos nos esconder.
– Bom dia, sinhô.
– Bom dia, Cuic-Cuic.
– Como vai?
– Vai indo.
– Mostre o barco ao meu amigo.
O barco é muito forte, uma espécie de barcaça de carga. É muito pesada, mas firme. Enfio minha faca em todo lugar. Não penetra em nenhum ponto mais de meio centímetro. O fundo também está intato. A madeira com a qual o barco foi fabricado é de primeira qualidade.
– Por quanto quer vender?
– Dois mil e quinhentos francos.
– Dou dois mil.
Negócio fechado.
– Este barco não tem quilha. Pago 500 francos mais, mas você precisa pôr uma quilha, um leme e um mastro. A quilha deve ser de madeira de lei, o leme também. O mastro tem que ter 3 metros de madeira leve e flexível. Quando vai ficar pronto?
– Daqui a oito dias.
– Aqui estão duas notas de 1 000 e uma de 500 francos. Vou rasgá-las em dois, dou a outra metade na entrega. Guarde as três metades das notas com você. Entendeu?