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Morto com uma facada, por uma bagatela, aos quarenta anos! Pobre amigo. Eu, por mim, não posso mais. Não. Não. Não. Quero que os tubarões me digiram, mas vivo, arriscando-me pela liberdade, sem sacos de farinha, sem pedra, sem cordas. Sem espectadores, nem forçados, nem guardas. Sem sino. Se tenho que virar bóia, pois bem… vão me apanhar vivo, lutando contra os elementos para chegar a alcançar a Terra Grande.

Acabou-se, bem acabado. Nada de fuga muito bem montada. A Ilha do Diabo, dois sacos de cocos e deixar tudo, seja como for, nas mãos de Deus.

Afinal, não vai passar de uma questão de resistência física. Quarenta e oito ou sessenta horas? Será que um tempo tão longo de imersão na água do mar, e mais o esforço dos músculos das coxas, contraídos sobre os sacos de cocos, não vão em certo momento paralisar minhas pernas? Se tenho a chance de ir à Ilha do Diabo, farei as tentativas. Primeiro sair de Royale e ir à Ilha do Diabo. Depois verei.

– Você está dormindo, Papi?

– Não.

– Quer um pouco de café?

– Se você quiser trazer…

Sento-me sobre a rede, aceitando o quarto de café quente que Grandet me estende com um cigarro aceso.

– Que horas são?

– Uma hora da manhã. Entrei de guarda à meia-noite, mas, como vi que você não parava de se mexer, achei que não estava dormindo.

– Tem razão. A morte de Matthieu me transtornou, mas seu enterro com os tubarões me afetou ainda mais. Aquilo foi horrível, sabe?

– Não me diga nada, Papi, suponho o que possa ter sido. Você não devia ter ido.

– Pensava que a estória do sino era conversa. Depois, com um fio de ferro segurando a grande pedra, eu jamais teria acreditado que os tubarões iam ter tempo de apanhá-lo na queda. Pobre Matthieu, vou continuar a ver aquela horrível cena pelo resto da minha vida. E você, como fez para eliminar tão depressa o armênio e Sans-Souci?

– Eu estava na ponta da ilha, colocando uma porta de ferro no açougue, quando soube que ele tinha matado o nosso amigo. Era meio-dia. Em lugar de subir para o barracão, fui para a oficina com a desculpa de consertar a fechadura. Pude encaixar um punhal, afiado dos dois lados, num tubo de 1 metro. O cabo do punhal era oco e o tubo também. Entrei no barracão, às 5 horas, com o tubo na mão. O guarda me perguntou que era aquilo, respondi que a travessa de madeira de minha cama quebrara e que eu ia utilizar aquele tubo naquela noite. Ainda era dia quando entrei na sala, mas havia deixado o tubo no lavatório. Antes da chamada, tornei a pegá-lo. A noite começava a cair. Rodeado por nossos amigos, encaixei rapidamente o punhal no tubo. O armênio e Sans-Souci estavam de pé em seus lugares, diante de suas redes, Paulo um pouco para trás. Você sabe, Jean Castelli e Louis Gravon são muito valentes, mas são velhos e falta-lhes agilidade para lutar num tumulto bem organizado.

– Eu queria agir antes que você chegasse, para evitar que se metesse naquilo. Com seus antecedentes, se fôssemos apanhados, você ia pegar o máximo. Jean foi ao fundo da sala e apagou um dos lampiões; Gravon, do outro lado, fez a mesma coisa. A sala estava quase sem luz, só com um lampião no meio. Eu tinha uma grande lanterna de bolso, que Dega me deu. Jean saiu na frente, eu atrás. Quando chegou perto deles, ergueu o braço e acendeu a lanterna. O armênio, ofuscado, levou o braço esquerdo aos olhos, eu tive tempo de atravessar-lhe o pescoço com minha lança. Sans-Souci, também ofuscado, atirou a faca para a frente, sem saber bem para onde, no vazio. Dei-lhe um golpe tão forte com minha lança, que o transpassei de lado a lado. Paulo se atirou de barriga no chão e rolou para baixo das redes. Como Jean apagara a lanterna, desisti de perseguir Paulo sob as redes, foi o que o salvou.

– E quem os arrastou para a privada?

– Não sei. Acho que foram os rapazes da curriola deles mesmo, para evitar maiores encrencas.

– Mas devia haver um mar de sangue desgraçado…

– Isso mesmo. Completamente degolados, devem ter-se esvaziado de toda a resina. O golpe da lanterna me ocorreu enquanto eu preparava a minha lança. Um guarda, na oficina, estava trocando as pilhas da dele. Isso me deu a idéia e logo falei com Dega para que me arranjasse uma. Eles podem fazer uma revista em regra. A lanterna já saiu daqui e foi devolvida a Dega por um carcereiro árabe, o punhal também. Portanto, nada de bomba por esse lado. Nada tenho a me reprovar. Eles mataram nosso amigo com os olhos cheios de sabão, eu os matei com os olhos cheios de luz. Estamos quites. Que acha, Papi?

– Você fez muito bem e não sei como lhe agradecer por ter agido tão depressa para vingar nosso amigo e, ainda por cima, por ter tido a idéia de me manter afastado dessa história.

– Não falemos nisso. Fiz o meu dever: você sofreu muito e quer tanto ser livre… Eu é que tinha de agir.

– Obrigado, Grandet. Sim, quero ir embora, mais do que nunca. Ajude-me, também, para que esse negócio pare por aí. Com toda a franqueza, ficaria muito surpreendido se o armênio tivesse posto sua curriola a par antes de agir. Paulo não teria aceitado um assassinato tão covarde. Ele sabia as conseqüências.

– Também penso assim. Só Galgani acha que todos eles são culpados.

– Vamos ver o que vai acontecer às 6 horas. Não vou sair para fazer limpeza nas latrinas. Vou fingir que estou doente, para assistir aos acontecimentos.

Cinco horas da manhã. O guarda do barracão se aproxima de nós:

– Rapazes, vocês acham que devo avisar o posto de guarda? Acabo de descobrir dois caras sangrados na privada!

Esse velho condenado de setenta anos quer nos fazer acreditar, logo nós, que desde às 6 e meia da tarde, hora em que os caras haviam sido esfriados, ele não sabia de nada. A sala deve estar cheia de sangue, pois obrigatoriamente os homens, andando, pisotearam a mancha, que fica bem no meio da passagem.

Grandet responde, no mesmo tom do velho:

– Como? Há dois defuntos na privada? Desde que horas?

– Sei lá! – diz o velho. – Eu estava dormindo desde as 6 horas. Só agora, quando fui mijar, escorreguei numa poça viscosa, quase quebrei a cabeça. Acendi meu isqueiro, vi que era sangue e encontrei os caras na privada.

– Avise e vamos ver.

– Vigilantes! Vigilantes!

– Por que está gritando tão alto, velho resmunguento? Pegou fogo na sua choça?

– Não, chefe. Há dois defuntos estirados na privada.

– Que quer que eu faça? Que os ressuscite? São 5 e 15, às 6 horas a gente vê isso. Não deixe ninguém se aproximar das privadas.

– Isso que você está querendo é impossível. A esta hora, perto do levantar geral, todo mundo vai mijar ou cagar.

– É verdade, espere, vou avisar o chefe da guarda.

Voltam, três guardas, um vigilante-chefe e outros dois. A gente pensa que vão entrar, mas não, ficam na porta gradeada.

– Você disse que há dois mortos na privada?

– Sim, chefe.

– Desde que horas?

– Não sei, acabo de encontrá-los, quando fui mijar.

– Quem são?

– Não sei.

– Está bem, velho cabeçudo, vou lhe dizer. Um é o armênio. Vá ver.

– De fato, são o armênio e Sans-Souci.

– Bem, vamos esperar a chamada – e eles vão embora.

Seis horas, o primeiro sino toca. Abrem a porta. Os dois distribuidores de café passam de lugar em lugar, atrás seguem os distribuidores de pão.

Seis e meia, o segundo sino. O dia nasceu e o corredor está cheio de marcas dos pés que pisaram no sangue esta noite.

Os dois comandantes chegam. O dia já vai alto. Oito vigilantes e o médico os acompanham.

– Todo mundo em pêlo, em posição de sentido, diante de suas camas! Mas é um verdadeiro açougue, há sangue por todo lado!

O segundo comandante é o primeiro a entrar nas latrinas. Quando sai, está branco como linho:

– Eles foram completamente degolados. Claro, ninguém viu nada, ninguém ouviu nada, não é?

Silêncio absoluto.

– Você, velho, é o guarda da sala; estes homens estão numa fria. Doutor, há quanto tempo eles estão mortos, aproximadamente?