– Papillon, espero que você não tenha nada contra mim.
– Nem eu, pessoalmente, nem ninguém na choça dos perigosos. Nos outros lugares, não sei.
Descemos até o comando. A casa e o cais estão iluminados com lâmpadas de carbureto que tentam espalhar luz à sua volta, sem conseguir. No caminho, Mohamed me dá um maço de cigarros. Ao entrar na sala fortemente iluminada com duas lâmpadas de carbureto, vejo, sentados, o comandante de Royale, o subcomandante, o comandante de Saint-Joseph, o da reclusão e o segundo-comandante de Saint-Joseph.
Fora, entrevi, vigiados por guardas, quatro árabes. Reconheci dois que estavam no serviço em questão.
– Chegou Papillon – diz o árabe.
– Boa noite, Papillon – diz o comandante de Saint-Joseph.
– Boa noite.
– Sente aqui, nessa cadeira.
Estou de frente para todo mundo. A porta da sala está aberta para a cozinha, onde a madrinha de Lisette me faz um aceno amistoso.
– Papillon – diz o comandante de Royale -, você é considerado pelo Comandante Dutain como um homem digno de confiança, redimido pela tentativa de salvamento da afilhada de sua esposa. Eu só o conheço pelas anotações oficiais que apresentam você como perigoso, de todos os pontos de vista. Quero esquecer essas anotações e acreditar no meu colega Dutain. Vamos ao assunto: vai chegar, sem dúvida, uma comissão de inquérito e todos os presos de todas as categorias terão de declarar o que sabem. É certo que você e mais alguns outros têm uma grande influência sobre todos os condenados e eles seguirão fielmente as instruções de vocês. Queremos saber qual é a sua opinião sobre a revolta e também se, mais ou menos, você está prevendo o que atualmente a sua choça, primeiro, e depois as outras, poderiam declarar.
– Eu não tenho nada a dizer, não tenho que influenciar os outros. Se a comissão vem com a intenção de fazer realmente um inquérito, nessa atmosfera de agora os senhores serão todos destituídos.
– O que você está dizendo, Papillon? Impedi a revolta, eu e meus colegas de Saint-Joseph!
– Talvez o senhor possa se salvar, mas não os chefes de Royale.
– Explique-se!
E os dois comandantes de Royale se levantam e sentam logo em seguida.
– Se continuarem a falar oficialmente em revolta, estão todos perdidos. Se aceitarem as minhas sugestões, todos se salvarão menos Filissari.
– Que sugestões?
– Primeiro, que a vida retome seu curso normal, imediatamente, a partir de amanhã de manhã. Só se a gente puder conversar é que se pode ter influência sobre todo mundo, a respeito do que os caras devem declarar à comissão. Correto?
– Sim – diz Dutain. – Mas por que nós, segundo você, estamos numa situação delicada?
– Vocês, de Royale, não são apenas os chefes de Royale, mas também chefes das três ilhas.
– Sim.
– Acontece que receberam uma denúncia de Girasolo delatando uma revolta em preparação. E indicando os chefes: Hautin e Arnaud.
– Carbonieri também – acrescenta o guarda.
– Não, isto não é verdade. Carbonieri era inimigo pessoal de Girasolo desde Marselha, então ele o incluiu gratuitamente na história. Mas a revolta, os senhores não acreditaram nela. Por quê? Porque ele disse que a revolta tinha como objetivo matar mulheres, crianças, árabes e guardas, coisa que parecia impossível. Por outro lado, haveria só duas chalupas para oitocentos homens em Royale e um para seiscentos em Saint-Joseph. Nenhum homem sério podia aceitar se envolver numa história dessas.
– Como é que sabe tudo isso?
– Problema meu. Mas, se continuarem a falar em revolta, nem que me façam sumir, e mais ainda se o fizerem, tudo isso será dito e provado. Então aparecerá a responsabilidade de Royale, que mandou estes homens a Saint-Joseph, mas sem separá-los um do outro. Embora reconheça que era difícil acreditar nessa história de loucos, a medida lógica era mandar um deles para a Ilha do Diabo e o outro para Saint-Joseph. E, se o inquérito descobrir isso, vocês não escaparão a sanções graves. Se falarem em revolta, continuo insistindo, vão se afundar. Então, devem aceitar as minhas sugestões: primeiro, como já disse, que a partir de amanhã a vida recomece normalmente; segundo, que todos os homens encarcerados nas celas por serem suspeitos de ter conspirado saiam imediatamente, e que não sejam interrogados sobre a sua cumplicidade na revolta, já que ela não existiu; terceiro, que imediatamente Filissari seja enviado a Royale, para a sua segurança pessoal, porque, se não houve revolta, como justificar o assassinato dos três homens? E também porque esse guarda é um assassino nojento e, quando agiu durante o incidente, estava com um medo louco e queria matar todo mundo, inclusive a gente lá na choça. Se aceitarem estas sugestões, farei com que todo mundo declare que Arnaud, Hautin e Marceau agiram de modo a fazer todo o mal possível antes de morrer. O que eles fizeram era imprevisível. Eles não tinham nem cúmplices, nem confidentes. Afinal de contas, são sujeitos que resolveram se suicidar desse modo, matar o maior número possível de pessoas antes de serem mortos eles mesmos, o que provavelmente estavam querendo. Se quiserem, eu vou ficar na cozinha e poderão assim discutir para me dar uma resposta.
Entro na cozinha e fecho a porta, A Sra. Dutain me aperta a mão, me dá um café e conhaque. O árabe Mohamed diz:
– Você não disse nada em meu favor?
– Isso é da conta do comandante. Já que ele lhe deu uma arma, é que tem a intenção de lhe fazer indultar.
A madrinha de Lisette me diz, baixinho:
– Você mandou brasa no pessoal de Royale.
– Claro, para eles era fácil demais aceitar uma revolta em Saint-Joseph, onde todo mundo devia estar informado, menos o seu marido.
– Papillon, ouvi tudo e logo entendi que você queria nos favorecer.
– É verdade, Sra. Dutain.
A porta se abre.
– Entre, Papillon – diz um guarda.
– Sente, Papillon – diz o comandante de Royale. – Após deliberação, concluímos por unanimidade que você tinha provavelmente razão. Não houve revolta. Os três forçados tinham resolvido se suicidar, matando antes a maior quantidade possível de gente. Portanto, amanhã a vida continua como antes. O Sr. Filissari será transferido hoje mesmo para Royale. Seu caso é da nossa conta e a este respeito não lhe pedimos nenhuma colaboração. Esperamos que você mantenha a sua palavra.
– Contem comigo. Até logo.
– Mohamed e os guardas, levem Papillon à sala. Façam entrar Filissari, ele vai conosco a Royale.
No caminho, digo a Mohamed que espero que ele seja posto em liberdade. Ele me agradece.
– Então, o que queriam os guardas?
Num silêncio absoluto, conto em voz alta, palavra por palavra, exatamente o que aconteceu.
– Se houver alguém que não está de acordo ou que pensa poder criticar este acordo que fiz com os guardas em nome de todos, que o diga.
Em coro, todos estão de acordo.
– Você acha que eles acreditaram que não tem mais ninguém envolvido?
– Não, mas se não quiserem cair, eles têm que acreditar. E nós, se não quisermos aborrecimentos, também temos que acreditar.
Hoje de manhã, às 7 horas, esvaziaram todas as celas do bloco disciplinar. Havia mais de 120 homens. Ninguém saiu para o trabalho, mas todas as salas foram abertas e o pátio está cheio de forçados que, em liberdade, falam, fumam, tomam sol, ou ficam na sombra, à vontade. Niston foi para o hospital. Carbonieri me diz que tinham colocado a indicação “Suspeito de cumplicidade na revolta” em pelo menos oitenta das cem portas das ceias.
Agora que estamos todos reunidos, ficamos sabendo a verdade. Filissari só matou um homem, os dois outros foram mortos por jovens guardas, ameaçados por homens que, encurralados e pensando que os outros fossem matá-los, investiam de faca aberta, para tentar matar pelos menos um antes de morrer. E foi assim que uma verdadeira revolta – que, felizmente, fracassou no nascedouro – se tornou o original suicídio de três forçados, tese aceita por todo mundo: administração e condenados. Ficou uma lenda ou uma história verdadeira, não sei exatamente, algo entre estas duas palavras.