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– Oito a dez horas – diz o médico.

– E você os descobriu só às 5 horas? Não viu nada, não ouviu nada?

– Não, eu sou duro de orelha, quase não enxergo, e ainda por cima tenho setenta anos nas costas, dos quais quarenta de prisão. Então, o senhor compreende, durmo bastante. Às 6 horas estava dormindo e foi a vontade de mijar que me acordou às 5 horas. Foi uma sorte, porque de hábito só acordo com o sino.

– Tem razão, foi uma sorte – diz, ironicamente, o comandante. – Para nós, também. Então todo mundo dormiu tranqüilo a noite toda, vigilantes e condenados. Padioleiros, retirem aqueles dois cadáveres e levem-nos para o anfiteatro. Quero que lhes faça autópsia, doutor. E vocês, um por um, saiam para o pátio, todos nus.

Um de cada vez, passados diante dos comandantes e do doutor. Examinam minuciosamente os homens, todas as partes do corpo. Ninguém tem ferimentos, vários têm Salpicos de sangue. Explicam que escorregaram ao irem à privada. Grandet, Galgani e eu somos examinados mais minuciosamente que os outros.

– Papillon, qual é o seu lugar? – remexem toda a minha mochila. – E a sua faca?

– Minha faca foi tomada às 7 horas da noite, na porta, pelo vigilante.

– É verdade – diz o guarda. – Ele fez um barulhão, dizendo que queríamos que o assassinassem.

– Grandet, esta faca é sua?

– É, sim, está no meu lugar, portanto é minha – ele examina escrupulosamente a faca, limpa como um centavo novo, sem uma mancha.

O médico volta das privadas e diz:

– Foi um punhal com fio duplo que serviu para degolar aqueles homens. Foram mortos de pé. Não dá para compreender. Um condenado não se deixa degolar como um coelho, sem se defender. Deveria haver alguém ferido.

– O senhor mesmo está vendo, doutor, ninguém tem nem mesmo um arranhão.

– Aqueles dois homens eram perigosos?

– Demais, doutor. O armênio devia ser, seguramente, o assassino de Carbonieri, que foi morto ontem no lavatório, às 9 horas da manhã.

– Negócio claro – diz o comandante. – De qualquer modo, guardem a faca de Grandet. Para o trabalho, todo mundo, menos os doentes. Papillon, você se declarou doente?

– Sim, comandante.

– Não perdeu tempo em vingar o seu amigo. Não sou pateta, você sabe. Infelizmente, não tenho provas e sei que não as encontraremos. Ainda uma última vez, ninguém tem nada a declarar? Se um de vocês pode esclarecer esse duplo crime, dou minha palavra que será solto e enviado para a Terra Grande.

Silêncio absoluto.

Toda a curriola do armênio declarou-se doente. Vendo isso, Grandet, Galgani, Jean Castelli e Louis Gravon também dizem que não se sentem bem, no último momento. A sala fica vazia de seus 120 homens. Ficam cinco da minha curriola e quatro da curriola do armênio, mais o relojoeiro, o guarda-rancho, que reclama sem parar por causa da limpeza que vai ter de fazer, e dois ou três outros duros, um dos quais é um alsaciano, o grande Sylvain.

Esse homem vive sozinho entre os duros, não tem amigos. Autor de um ato pouco comum que lhe rendeu vinte anos, é um homem de ação muito respeitado. Sozinho, atacou um vagão postal, no rápido Paris-Bruxelas, matou os dois guardas a pancadas, jogou os sacos postais pela janela e, recolhidos por cúmplices ao longo da via, eles renderam uma soma importante.

Sylvain, vendo as duas curriolas cochichando, cada qual em seu canto, e ignorando que havíamos feito o acordo de não agir uma contra a outra, permitiu-se tomar a palavra:

– Espero que vocês não vão se bater em tumulto arranjadinho, gênero dos três mosqueteiros?

– Por hoje não – diz Galgani. – Ficará para mais tarde.

– Por que mais tarde? Não se deve deixar para amanhã o que se pode fazer hoje – diz Paulo -, mas eu não vejo razão para nos matarmos. Que acha, Papillon?

– Uma pergunta só: vocês sabiam o que o armênio ia fazer?

– Minha palavra de homem, Papi, não sabíamos de nada e quer saber o que lhe digo? Não sei como receberia a notícia se o armênio não tivesse morrido.

– Então, se é assim, por que não parar essa história para sempre? – diz Grandet.

– Nós estamos de acordo. Apertemos as mãos e não se fala mais nesse triste negócio.

– Entendido.

– Sou testemunha – diz Sylvain. – Fico satisfeito por ver isso acabado.

– Não se fala mais.

À noite, às 6 horas, o sino toca. Não me posso impedir, ao escutá-lo, de rever a cena da véspera, e meu amigo com metade do corpo erguido, vindo para o bote. A imagem é tão impressionante, mesmo 24 horas depois, que não desejo, nem por um segundo, que o armênio e Sans-Souci sejam levados pela horda dos tubarões.

Galgani não diz uma palavra. Ele sabe o que aconteceu com Carbonieri. Olha para o nada, balançando as pernas que pendem à direita e à esquerda de sua rede. Grandet ainda não voltou. 0 dobre de finados terminara bem há uns dez minutos quando Galgani sem me olhar, sempre balançando as pernas, diz à meia voz:

– Espero que nenhum pedaço daquele armênio sujo seja comido por um dos tubarões que engoliram Matthieu. Seria péssimo se eles, separados em vida, fossem se encontrar na barriga de um tubarão.

Vai ser realmente um vazio para mim a perda desse amigo nobre e sincero. É melhor que eu vá embora de Royale e aja o mais depressa possível. Todos os dias me repito isto.

UMA FUGA DOS LOUCOS

– Como estamos em guerra e as punições foram reforçadas em caso de evasão falhada, não é o momento de arriscar uma fuga, não é, Salvidia?

O italiano do plano do ouro do comboio e eu discutimos no banho, depois de termos lido o cartaz que nos comunica as novas disposições em caso de evasão. Eu lhe digo:

– Mas não é porque isso nos arrisca a sermos condenados à morte que vai me impedir de partir. E você?

– Eu, Papillon, não agüento mais e vou fugir. Aconteça o que acontecer. Pedi para trabalhar no asilo de loucos como enfermeiro. Sei que na despensa do asilo há dois tonéis de 225 litros, o suficiente para fazer uma jangada. Um está cheio de óleo de oliva, o outro de vinagre. Bem ligados um ao outro, de modo a não poderem se separar em caso algum, parece que assim haveria uma boa chance de alcançar a Terra Grande. Não há vigilância por trás do muro que rodeia o pavilhão dos loucos. Lá dentro há apenas a vigilância permanente de um guarda-enfermeiro, ajudado por duros, sobre os que se fazem de doentes. Quer ir comigo lá para cima?

– Como enfermeiro?

– Impossível, Papillon. Você sabe que nunca lhe darão um emprego no asilo. Sua localização afastada no barracão, sua pouca vigilância, tudo faz com que não mandem você para lá. Mas poderia ir para lá como louco.

– Isso é muito difícil, Salvidia. Quando um doutor classifica você de biruta, está lhe dando praticamente o direito de fazer qualquer coisa que queira. De fato, você é reconhecido como irresponsável por seus atos. Percebe a responsabilidade que um médico assume quando admite isso e assina o diagnóstico? Você pode matar um duro, até mesmo um guarda ou a mulher de um guarda, ou um filho. Você pode fugir, cometer não importa qual delito, a Justiça não tem mais nenhum recurso contra você. O máximo que poderiam lhe fazer é enfiá-lo em uma cela acolchoada, em pêlo, com a camisa-de-força. Esse regime não pode durar mais do que um certo tempo, um dia eles têm que suavizar o tratamento. Resultado: por não importa qual ação muito grave, inclusive fuga, você não paga coisa alguma.

– Papillon, tenho confiança em você, gostaria de fugir com você. Faça o possível para ir ficar junto comigo, como louco. Como enfermeiro, eu poderia ajudá-lo a preparar o golpe o melhor possível e aliviá-lo nos momentos mais duros. Reconheço que deve ser terrível encontrar-se, não estando doente, no meio daqueles seres tão perigosos.

– Vá para. o asilo, Romeo, eu vou estudar o caso a fundo, vou procurar me informar sobre os primeiros sintomas de loucura, para conseguir convencer o médico. Não é má idéia fazer com que o médico me considere irresponsável.