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Um dia, Dandosky agrediu um aprendiz de padeiro que era também distribuidor de pão. O aprendiz não morava na mesma sala dos padeiros, mas com ele e lhe diz:

– Quer saber de uma coisa, o coelho que Corrazi e Angelo te fizeram comer era o teu gato.

– Cadê a prova? – grita o polaco, agarrando o outro pelo pescoço.

– Debaixo da mangueira que fica atrás dos canoeiros, um pouco mais para lá, eu vi Corrazi, quando ele estava enterrando a pele do seu gato.

Como um louco, o polaco vai verificar e realmente encontra a pele. Recolhe a pele, já meio podre, a cabeça em decomposição. Lava-a com água do mar, estende-a ao sol para que seque, depois a envolve num pano muito limpo e enterra-a num local seco, bem fundo, para que as formigas não a comam. Foi isso que ele me contou.

De noite, à luz de um lampião de petróleo, Corrazi e Angelo um ao lado do outro, sentados num banco de tábuas muito grossas, na sala dos padeiros, jogam cartas com mais dois parceiros. Dandosky é um homem de uns quarenta anos, estatura mediana, entroncado, largo de ombros, muito forte. Prepara um grande porrete de pau-ferro, aliás tão pesado como esse metal; aproxima-se por trás e sem uma palavra vibra um fortíssimo golpe na cabeça de cada um dos dois. Os crânios se abrem como duas granadas e escorrem os miolos pelo chão. Possuído de raiva furiosa, Dandosky não se satisfaz simplesmente com a morte dos dois, ele pega os miolos e os esmaga contra a parede da sala. Fica tudo borrado de sangue e miolos.

Se eu, por um lado, não encontrei compreensão por parte do comandante da gendarmaria, presidente do tribunal militar, Dandosky, por outro lado, embora tivesse cometido dois assassinatos com premeditação, encontrou tanta compreensão, que foi condenado a apenas cinco anos.

SEGUNDA RECLUSÃO

Amarrado ao polaco, eu fui levado para as ilhas. Não demoramos muito no presídio de Saint-Laurent. Chegamos numa segunda-feira, passamos pelo tribunal militar na quinta, e na sexta de manhã nos embarcavam de volta para as ilhas.

Vão nesta viagem para as ilhas dezesseis homens, dos quais doze para a reclusão. A travessia se faz com um mar muito agitado, muitas vezes o passadiço é varrido por um vagalhão mais forte que os outros. Meu desespero é tanto, que chego a desejar que esse barco afunde. Não falo com ninguém, vou concentrado, preocupado comigo mesmo, por causa desse vento molhado que me fustiga o rosto. Não protejo o rosto, pelo contrário. De propósito deixo voar meu chapéu, não vou precisar dele durante meus oito anos de reclusão. Com o rosto virado de frente para o vento, aspiro até perder o fôlego esse ar que me açoita. Primeiro, desejei o naufrágio; depois, consigo novamente pôr as idéias no lugar: “Bébert Celier foi devorado pelos tubarões; eu tenho trinta anos e oito a passar na reclusão”. Mas será que é possível sobreviver oito anos na devoradora de homens?

Segundo a experiência que já tenho, acredito que seja impossível. Quatro ou cinco anos devem ser o limite extremo da resistência possível. Se eu não tivesse matado Celier, teria apenas três anos a cumprir, talvez mesmo só dois, porque a morte dele agravou todas as outras coisas, inclusive a evasão. Eu não devia ter matado aquele crápula. Meu dever de homem para comigo mesmo não é de fazer a minha justiça; é, em primeiro lugar e acima de tudo, viver, viver para fugir. Como é que eu pude cometer tamanho erro? Sem contar que, por pouco, era ele que me matava, aquele merda. Viver, viver, viver é o que deveria ter sido e deverá ser a minha única religião.

Entre os guardas que escoltam o grupo de forçados, há um que eu já conheci na reclusão. Não sei como ele se chama, mas estou louco de vontade de perguntar uma coisa a ele.

– Chefe, queria lhe perguntar uma coisa.

Espantado, ele chega mais para perto de mim e diz:

– O quê?

– Você sabe de algum homem que conseguiu passar oito anos na reclusão?

Ele fica pensativo durante uns momentos e depois me diz:

– Não, mas já vi muitos que passaram cinco anos, e até um cara, me lembro muito bem, que saiu com uma saúde razoável e bem equilibrado após seis anos. Eu estava na reclusão quando ele foi liberado.

– Obrigado.

– De nada – diz o guarda. – Você, se não me engano, vai para ficar oito anos?

– Certo, chefe.

– Você só pode sair dessa se não pegar nenhuma punição, nenhuma vez.

E ele se afasta.

Essa frase é muito importante. É verdade, só saio vivo se não for punido nenhuma vez. Isso porque, como as punições são na base de suprimir parte ou toda a alimentação durante algum tempo, em seguida a isso, mesmo voltando ao regime normal, a gente não se recupera nunca mais. Certas punições mais fortes impedem que se resista até o fim, a gente se acaba antes do fim. Conclusão: não devo aceitar cocos nem cigarros, nem mesmo escrever ou receber bilhetes.

Durante todo o resto da viagem rumino incessantemente essa decisão. Nada, absolutamente nada, nem com o exterior nem com o interior. Ocorre-me uma idéia: o único jeito de receber apoio, sem arriscar a comida, é que do exterior alguém pague aos distribuidores de sopa para que eles escolham um dos maiores e melhores pedaços de carne no almoço. É fácil, porque há um que serve o caldo e outro que vem atrás, com uma bandeja, e põe na tigela um pedaço de carne. É preciso que ele remexa até o fundo do ensopado e me dê uma concha com o máximo possível de legumes. Só o fato de eu ter tido essa idéia já me reanima. Realmente, assim eu poderia muito bem comer o suficiente para matar a fome e quase que satisfatoriamente, se esse esquema for bem montado. E eu, por minha vez, que trate de sonhar e de me ausentar o mais possível, escolhendo temas agradáveis, senão fico louco.

Chegamos às ilhas. São 3 horas da tarde. Assim que desembarco, vejo o vestido amarelo claro de Juliette, ela ao lado do marido. O comandante se aproxima de mim rapidamente, antes mesmo que a turma tenha tido tempo de se pôr em fila, e me diz:

– Quanto?

– Oito anos.

Ele volta para junto da esposa e fala com ela. Emocionada, com certeza, ela se senta numa pedra. Completamente prostrada. Seu marido a segura pelo braço, ela se levanta e, depois de me lançar um sombrio olhar com aqueles seus imensos olhos, os dois vão embora sem se virar mais.

– Papillon – pergunta Dega -, quanto?

– Oito anos de reclusão.

Ele não responde nada e não tem coragem de olhar para mim. Galgani se aproxima e, antes que ele fale, eu digo:

– Não me mande nada e nem me escreva nada. Com uma pena assim longa, eu não posso me arriscar a uma punição.

– Compreendo.

Em voz baixa, acrescento apressadamente:

– Dê um jeito para que eles me sirvam o melhor possível no almoço e no jantar. Se você conseguir isso, talvez a gente volte a se ver um dia. Adeus.

Voluntariamente me dirijo para a primeira canoa que vai nos levar para Saint-Joseph. Todo mundo me olha como se olhasse um caixão que está baixando para a sepultura. Ninguém fala nada. Durante a curta viagem, eu repito a Chapar o que disse a Galgani. Ele me responde:

– Acho que dá pra arranjar isso. Coragem, Papi.

E acrescenta:

– E Matthieu Carbonieri?

– Me desculpe, eu tinha me esquecido dele. O presidente do tribunal militar solicitou que seja feita uma complementação de informação sobre o caso dele antes de tomar uma decisão; isso é bom ou mau sinal?

– É bom sinal, acho eu.

Sou dos primeiros na pequena coluna de doze homens que escala a encosta para chegar à reclusão. Subo rápido, tenho pressa, engraçado, de me ver só na minha cela. Apresso tanto o passo, que o guarda me diz.

– Mais devagar, Papillon. Até parece que você está com pressa de chegar nessa casa donde você saiu há tão pouco tempo.

Estamos chegando.

– Sentido! Apresento-lhes o comandante da reclusão.

– Lamento que você tenha voltado para cá, Papillon – diz ele.

E em seguida: