É com uma verdadeira revolução que terminam os seis meses seguintes. Efetivamente, ontem nos mandaram pôr a cabeça para fora e passou um médico que levantava os lábios de cada um de nós. E, hoje de manhã, depois de exatamente dezoito meses que estou nesta cela, a porta se abriu e me disseram:
– Saia, encoste-se na parede e fique esperando.
Eu era o primeiro ao lado da porta, saíram uns setenta homens.
– Meia volta, esquerda.
Sou agora o último de uma fila que se alonga até a outra extremidade do prédio e sai para o pátio.
São 9 horas. Um jovem doutorzinho, com camisa cáqui de mangas curtas, está sentado ao ar livre, junto a uma mesa de madeira. Ao lado dele, dois forçados enfermeiros e um guarda enfermeiro. Todos eles, e o médico também, me são desconhecidos. Dez guardas, de carabina em punho, fazem a cobertura do cerimonial. Comandante e guarda-chefe, em pé, contemplam a cena em silêncio.
– Todo mundo nu – grita o guarda-chefe. – A roupa debaixo do braço. O primeiro. Seu nome?
– X…
– Abra a boca, as pernas. Arranque estes três dentes dele. Álcool iodado primeiro, azul-de-metileno depois, xarope de cocleária duas vezes por dia, antes das refeições.
Sou o último.
– Seu nome?
– Charrière.
– Puxa, você é o único que está com um corpo apresentável. Você chegou há pouco tempo?
– Não.
– Há quanto tempo está aqui?
– Faz hoje dezoito meses.
– Por que você não está magro como os outros?
– Não sei.
– Bom, eu vou lhe dizer por quê. É porque você come melhor do que eles, salvo se você se masturba menos. A boca, as pernas. Dois limões por dia: um de manhã, um na hora do jantar. Chupe os limões e passe o suco nas gengivas, você está com escorbuto.
Limpam-me as gengivas com álcool iodado, depois me pincelam com azul-de-metileno, me dão um limão. Meia volta, sou o último da fila e volto para a minha cela.
O que acaba de acontecer é uma verdadeira revolução, levar para fora os doentes até o pátio, deixá-los ver o sol, mostrá-los ao médico, de perto. Isso nunca se viu na reclusão. O que estará acontecendo? Será que, afinal, um médico se recusou a ser cúmplice calado desse famoso regulamento? Este médico, que mais tarde vai se tornar meu amigo, se chama Germain Guibert. Morreu na Indochina. Sua esposa me contou isso, muitos anos depois desse dia, numa carta que me escreveu para Maracaibo, na Venezuela.
De dez em dez dias, consulta no sol. Sempre a mesma receita: álcool iodado, azul-de-metileno, dois limões. Meu estado não piora, mas também não melhora. Duas vezes eu pedi xarope de cocleária e duas vezes o médico me negou, e isso começa a me irritar, porque continuo sem poder andar mais de seis horas por dia, a parte de baixo das minhas pernas está preta e inchada.
Um dia, ao esperar a minha vez de consulta, percebo que a pequena árvore raquítica que me protege um pouco contra os raios do sol é um limoeiro sem limões. Arranco uma folha e a mastigo e, em seguida, maquinalmente, corto fora um pequeno ramo com algumas folhas, sem idéia preconcebida. Quando o médico me chama, meto o ramo no traseiro e digo a ele:
– Doutor, não sei se é culpa dos seus limões, mas olhe só o que me brotou atrás.
E me viro com o meu raminho cheio de folhas no traseiro.
Os guardas primeiro caem na gargalhada e depois o guarda-chefe diz:
– Você terá uma punição, Papillon, por falta de respeito ao médico.
– De jeito nenhum – diz o médico. – Este homem não deve ser punido, uma vez que eu não fiz queixa. Você não quer mais limões? É isso que você quis dizer?
– É isso, doutor, já chega de limões, isso não me cura. Quero experimentar o xarope de cocleária.
– Não lhe receitei porque tenho muito pouco e economizo para os doentes graves. Mas vou lhe receitar uma colherada por dia e vamos continuar com os limões.
– Doutor, já vi índios comerem algas do mar, e sei que existem as mesmas algas na Ilha Royale. Deve ter também na Ilha Saint-Joseph.
– Você me deu uma idéia brilhante. Vou mandar distribuir para vocês todo dia uma certa alga que realmente eu também já vi na praia. Os índios a comem crua ou cozida?
– Crua.
– Está bem, obrigado. Meu comandante, espero que este homem não seja punido, confio no senhor.
– Certo, capitão.
Um milagre aconteceu. Sair toda semana para o sol por duas horas, ou ficar à espera do momento da consulta, espiando a consulta dos outros, ver caras de gente, murmurar algumas palavras; quem poderia sonhar que uma coisa tão maravilhosa pudesse acontecer. É uma transformação fantástica para todos: os mortos se erguem e caminham sob o sol; esses enterrados vivos, afinal, podem dizer algumas palavras. É uma botija de oxigênio que insufla vida nova a cada um de nós.
Claque, claque, infinidades de claques abrem todas as portas das celas uma quinta-feira de manhã, às 9 horas. Todo recluso recebe ordem de ficar de pé na soleira de sua porta.
– Reclusos – grita uma voz -, inspeção do governador.
Acompanhado por cinco oficiais, sem dúvida todos médicos, um homem alto, elegante, cabelos grisalhos prateados, passa lentamente ao longo do corredor, diante de cada cela. Ouço que lhe indicam quais os de pena mais pesada e os motivos delas. Antes de chegar à altura da minha cela, levantam um homem que não teve forças para esperar por tanto tempo em pé. É um dos antropófagos Graville. Um dos militares diz:
– Mas é um cadáver ambulante, esse aí!
O governador responde:
– Estão todos em estado deplorável.
A comissão chega até a minha cela. O comandante diz:
– Este aqui tem a pena mais pesada da reclusão.
– Como se chama? – pergunta o governador.
– Charrière.
– Sua pena?
– Oito anos por roubo de material do Estado, etc, morte, três e cinco anos, com distinção entre as penas.
– Quanto já cumpriu?
– Dezoito meses.
– Seu comportamento?
– Bom – diz o comandante.
– De saúde?
– Sofrível – diz o médico.
– Que tem a declarar?
– Que este regime é desumano e pouco digno de um povo como o da França.
– Os motivos?
– Silêncio absoluto, nenhuma saída ao pátio e até poucos dias nenhum cuidado médico.
– Mantenha-se em boa conduta e talvez a sua pena seja comutada, se eu continuar no cargo de governador.
– Obrigado.
A partir desse dia, por ordem do governador e do médico-chefe vindos da Martinica e de Caiena, todos os dias, uma hora de saída ao pátio e banho de mar, em uma espécie de piscina improvisada onde os banhistas são protegidos dos tubarões por grandes blocos de pedra.
Às 9 horas, toda manhã, em grupos de cem, descemos da reclusão, completamente nus, para o banho. As esposas e os filhos dos vigias tem ordem de ficar dentro de casa, para a gente poder ir nu.
Já faz um mês que as coisas estão assim. As caras dos homens se transformaram completamente. Essa hora de sol, esse banho em água salgada, o fato de poder falar uma hora por dia, tudo isso transformou radicalmente a manada de reclusos, doentes física e moralmente.
Um dia, no caminho de volta da piscina para a reclusão, estou entre os últimos, quando se ouvem gritos desesperados de mulher e dois tiros de revólver. Percebo:
– Socorro! Minha filha está se afogando!
Os gritos vêm do cais, que não passa de um declive cimentado que entra pelo mar adentro e onde encostam as canoas. Mais gritos:
– Os tubarões!
E mais dois tiros de revólver. Como todo mundo se virou para o lado dos gritos e tiros de revólver, sem pensar duas vezes eu empurro um guarda e saio correndo todo nu para o cais. Quando chego, vejo duas mulheres gritando como duas perdidas, três vigias e uns árabes.
– Entrem na água! – grita a mulher. – Ela não está longe! Eu não sei nadar, senão eu ia. Corja de covardes!
– Os tubarões! – diz um guarda.
E dá outro tiro.
Uma menina com seu vestido azul e branco flutua no mar, levada devagar por uma correnteza fraca. Ela vai sendo levada diretamente para a confluência das correntezas que serve de cemitério para os forçados, mas ainda está muito longe desse ponto. Os guardas atiram sem parar e sem dúvida acertaram vários tubarões porque há umas reviravoltas perto da menina.