Depois de quatro dias, o preto da Martinica declara que posso me virar sozinho. Só há um problema: de manhã, às 5 horas, tenho que nadar no laguinho à procura de Brutus, que se esconde, pois não gosta de trabalhar. Como ele tem o focinho muito sensível, prendeu-se nele uma argola de ferro na qual uma corrente de 50 centímetros fica pendurada o tempo inteiro. Quando encontro Brutus, ele se afasta, mergulha e reaparece mais longe. Às vezes levo mais de uma hora para pegá-lo nesta água estagnada e nojenta, cheia de bichos e vitórias-régias. Enfureço-me sozinho: “Fodido! Filho da mãe! Teimoso como um bretão! Você vai sair daí, sim ou não? Seu merda!” Mas ele só reage à puxada na corrente, quando consigo pegá-lo. Às ofensas, ele nem liga. Quando, finalmente, ele sai da água, então se torna meu chapa.
Tenho dois barris de gordura vazios, que enchi de água doce. Começo por tomar um banho, limpar-me bem desta água viscosa do, lago. Depois de eu ter-me ensaboado e enxaguado bem, sobra em geral mais da metade de um barril de água doce. Aí lavo Brutus com água e gordura de coco. Esfrego bastante as partes sensíveis e o borrifo, para limpá-lo. Brutus esfrega então a cabeça nas minhas mãos e, sozinho, vai se colocar na frente do timão da carroça. Nunca o pico com o dardo, como fazia o cara da Martinica. Brutus é grato, pois anda mais depressa comigo do que com ele.
Há uma linda bufalazinha que está apaixonada por Brutus; ela nos acompanha, andando ao nosso lado. Não a mando embora, como fazia o outro vaqueiro, antes pelo contrário. Deixo que ela beije Brutus e nos acompanhe aonde quer que a gente vá. Por exemplo, não os incomodo quando eles se beijam e Brutus fica agradecido, pois sobe os 3 000 litros de água a uma velocidade incrível. Parece que ele quer compensar o tempo que me fez perder nas suas sessões de língua com Marguerite, já que a búfala se chama Marguerite.
Ontem, na chamada das 6 horas, houve um pequeno escândalo por causa de Marguerite. O preto da Martinica, parece, desaparecia todos os dias para os lados onde costumava ficar a búfala. Apanhado em flagrante por um guarda, pegou trinta dias de cana. “Coito com animal”, motivo oficial. Pois ontem, na chamada, Marguerite chegou ao campo, passou na frente de mais de sessenta homens e, chegando à altura da do preto, deu um pequeno mugido de reconhecimento, parou, virou-se e ficou à espera. Foi uma gargalhada geral, e o preto ficou cinzento de vergonha.
Tenho que fazer três viagens de água por dia. O que mais demora é os dois carregadores de baixo encherem o barril, mas é relativamente rápido. Às 9 horas já acabei e vou pescar.
Fiz um acordo com Marguerite para tirar Brutus da água. Coçando-a no ouvido, ela emite um som parecido com o de uma égua no cio. Aí Brutus sai sozinho. Embora não tenha mais que me lavar, continuo a lhe dar banho, melhor do que antes. Limpinho e sem o cheiro nauseabundo da água nojenta onde ele passa a noite, agrada mais ainda a Marguerite e fica numa alegria imensa por causa disso!
Voltando do mar, na metade da encosta, há um lugar achatado com uma grande laje. Brutus tem o hábito de tomar fôlego aí durante uns cinco minutos; calço então a carroça e assim ele descansa melhor. Mas hoje de manhã, um outro búfalo, Danton, tão grande quanto ele, nos esperava escondido atrás de pequenos coqueiros que ainda só têm folhas, pois ali é um viveiro de plantas. Danton surge e ataca Brutus, que se afasta; o golpe é desviado, e o outro bate na carroça. Um dos chifres dele penetra no barril. Danton faz esforços desmedidos para se livrar; eu liberto Brutus dos arreios. Então Brutus toma distância, do lado mais alto, pelo menos 30 metros, e a galope se precipita contra Danton. O medo ou o desespero fazem com que este, antes que o meu búfalo o tenha atingido, se livre do barril, deixando nele um pedaço de chifre, mas Brutus não consegue brecar em tempo e bate na carroça, que vira.
Aí assisto a uma coisa muito curiosa. Brutus e Danton encostam os chifres sem se empurrar, esfregam apenas seus imensos chifres um no outro. Parece que estão conversando e, no entanto, eles não berram, resfolegam apenas. Em seguida, a búfala sobe lentamente a encosta, seguida pelos dois machos, que, de vez em quando, param e voltam a esfregar e entrelaçar os chifres. Quando demoram demais, Marguerite geme lânguida e continua em direção ao planalto. Os dois mastodontes, um ao lado do outro, prosseguem na caminhada. Depois de três paradas com a mesma cerimônia, chegamos ao planalto. Damos na parte que está diante do farol, uma praça vazia de aproximadamente 300 metros de comprimento. No fundo, o campo dos forçados; à direita e à esquerda, os prédios dos dois hospitais: para prisioneiros e para militares.
Danton e Brutus continuam seguindo a vinte passos. Marguerite, por sua vez, vai tranqüilamente até a parte central da praça e pára. Os dois inimigos chegam até ela. De vez em quando, ela solta o seu gemido, longo e positivamente sexual. Eles tocam novamente os chifres, mas desta, vez tenho realmente a impressão de que estão se falando, pois ao resfôlego se misturam sons que devem significar alguma coisa,
Depois dessa conversa, um deles sai pela direita, lentamente, e o outro pela esquerda. Vão se colocando nas extremidades da praça. Há, portanto, entre eles, 300 metros. Marguerite, sempre no meio, espera. Entendi: vai haver um duelo nos devidos termos, aceitos pelas duas partes, tendo a jovem búfala como troféu. Aliás, a garota búfala está de acordo, orgulhosa porque os dois apaches vão lutar por ela.
A um berro de Marguerite eles se atiram um sobre o outro. Na trajetória que cada um pode percorrer, cerca de 150 metros, é inútil dizer que os seus 2 000 quilos se multiplicam pela velocidade que eles chegam a alcançar. O choque das duas cabeças é tão violento, que os dois ficam nocauteados durante mais de cinco minutos. As pernas de ambos amoleceram. O mais rapidamente refeito é Brutus, que, a galope, volta a seu lugar. A batalha se prolonga por duas horas. Alguns guardas queriam matar Brutus, mas me opus a isso e, num dado momento, num choque, Danton quebrou o chifre que ele já tinha estragado contra o barril. Fugiu, perseguido por Brutus. A batalha-perseguição se prolongou até o dia seguinte. E por onde passaram – jardins, cemitério, lavanderia – destruíram tudo.
Só depois de terem brigado a noite inteira é que, na manhã seguinte, lá pelas 7 horas, Brutus conseguiu encurralar Danton contra a parede do açougue, que está à beira-mar, e aí enfiou um chifre inteiro na barriga do outro. Para acabar com ele definitivamente, Brutus girou duas vezes sobre si mesmo, a fim de que o chifre também girasse dentro da barriga de Danton. E, no meio de um riacho de sangue e tripas, este caiu vencido, agonizante.
Essa batalha de colossos enfraqueceu Brutus a ponto de eu ter que livrar o seu chifre, para ele poder se levantar. Cambaleando, ele se afastou pelo caminho à beira-mar e lá Marguerite se pôs a andar ao lado dele, amparando com sua cabeça sem chifres o pesado pescoço dele.
Não assisti à noite de comemoração da vitória, pois o guarda responsável pelos búfalos me acusou de ter soltado Brutus e, então, perdi o meu lugar de condutor de búfalos.
Pedi para falar com o comandante a respeito de Brutus.
– Papillon, então, o que foi que aconteceu? Brutus deve ser abatido, ele é perigoso demais. Já são três os belos machos que ele mata.
– Vim aqui justamente para pedir ao senhor para salvar Brutus. Este guarda encarregado dos búfalos não entende nada do assunto. Deixe-me contar para o senhor como Brutus agiu em legítima defesa.
O comandante sorri:
– Estou ouvindo.
– … Portanto, o senhor entendeu, meu comandante, que meu búfalo foi agredido – concluí, depois de ter contado todos os detalhes. – Ainda mais, se eu não tivesse soltado Brutus, Danton o matava preso, incapaz, logo, de se defender, já que ele estava atado à carroça.