E fecha a porta novamente, bem devagar.
Esses guardas corsos são incríveis; ou completamente maus ou completamente bons. Bato na porta e grito:
– Estou ferido, quero que me levem para o hospital, para fazer curativo.
O guarda volta com o guarda-chefe do setor disciplinar.
– O que é que você tem? Pra que tanto barulho?
– Estou ferido, chefe.
– Ah! Você está ferido? Eu pensava que ele não tinha feito nem um arranhão, quando atacou você.
– Estou com o músculo do braço direito cortado.
– Abra – diz o outro guarda.
A porta se abre, eu saio. Realmente, há um grande corte no músculo.
– Ponha as algemas nele e leve ao hospital. Não saia de perto dele lá no hospital. Traga ele de volta para cá depois de tratar do ferimento.
Na hora em que saímos, há mais de dez guardas com o comandante. O guarda da oficina me diz:
– Assassino!
Antes de qualquer resposta minha, o comandante diz a ele:
– Cale-se, guarda Bruet. Papillon foi atacado.
– Não é fácil de acreditar – diz Bruet.
– Eu vi tudo e sou testemunha – diz Antartaglia. – E saiba, Sr. Bruet, que um corso não mente.
No hospital, Chatal chama um médico. Ele costura meu braço sem anestesia, nem mesmo anestesia local, depois me põe oito grampos, sem me dirigir uma palavra. No fim. ele diz:
– Eu não pude fazer anestesia local, não tenho mais injeções de anestesia.
E acrescenta:
– Não está certo o que você fez.
– Ah, que nada! De qualquer jeito, ele não ia continuar vivo muito tempo, com aquele abscesso no fígado.
Minha resposta inesperada deixou o homem embasbacado.
A instrução prossegue. A responsabilidade de Bourset é completamente eliminada. Admitem que ele estava aterrorizado e eu colaboro para fazer aceitarem esta versão. Quanto a Naric e Quenier, também se safam, por inexistência de provas. Sobramos eu e Carbonieri. Para Carbonieri, eliminam a acusação de roubo e desvio de material pertencente ao Estado. Fica a acusação de cumplicidade em tentativa de evasão. Não lhe podem dar mais de seis meses. Quanto a mim, as coisas se complicam. Com efeito, apesar de todos os testemunhos a meu favor, o encarregado da instrução não quer admitir a legítima defesa. Dega, que viu o dossiê inteirinho, me diz que, apesar dos esforços do instrutor, é impossível que me condenem à morte, pelo fato de eu ter recebido um ferimento. Uma coisa em que se apóia a acusação para me arrasar é que os dois guardas árabes declaram que fui eu que puxei a faca primeiro.
A instrução terminou. Aguardo o momento de descer até Saint-Laurent, para passar pelo tribunal militar. Só fico fumando, quase não ando. Deram-me o direito de um segundo passeio de uma hora, durante a tarde. Nunca o comandante nem os guardas, salvo aquele da oficina e o da instrução, demonstraram hostilidade para comigo. Todos me falam sem rancor e me deixam mandar vir quanto fumo eu quiser.
A minha partida está marcada para sexta-feira, hoje é terça. Na quarta de manhã, às 10 horas, estou no pátio já faz umas duas horas, quando o comandante me manda chamar e diz:
– Venha falar comigo.
Saio com ele, sem escolta. Pergunto para onde vamos, ele pega o caminho da casa dele. A certa altura, ele me diz:
– Minha esposa quer falar com você antes da sua partida. Não quero impressioná-la, por isso não mandei vir junto nenhum guarda armado. Espero que você se comporte corretamente.
– Sim, meu comandante.
Chegamos à casa dele.
– Juliette, eu lhe trouxe o seu protegido, conforme prometi. Você sabe que preciso levá-lo de volta antes do meio-dia. Você tem quase uma hora para conversar com ele.
E ele se retira discretamente.
Juliette se aproxima de mim e põe a mão no meu ombro, olhando-me nos olhos. Os olhos dela brilham ainda mais assim cheios de lágrimas, que felizmente ela contém.
– Você está louco, meu amigo. Se você tivesse me dito que queria ir embora, eu acho que poderia ter sido capaz de facilitar as coisas. Pedi a meu marido que ajudasse você o mais possível e ele me disse que isso não depende dele, infelizmente. Mandei buscar você, em primeiro lugar, para ver como está. Dou-lhe parabéns pela sua coragem, você está com um aspecto melhor do que eu esperava. E também para dizer que eu quero lhe pagar o peixe que você tão generosamente me deu durante tantos meses. Olhe, tome 1000 francos, é tudo o que eu posso lhe dar. Lamento não poder fazer mais por você.
– Olhe, minha senhora, não estou precisando de dinheiro. Eu lhe peço, por favor, compreenda que eu não devo aceitar; isso seria, na minha opinião, manchar a nossa amizade.
E afasto com um gesto as duas notas de 500 francos que ela me oferecia tão generosamente.
– Não insista, lhe peço, por favor.
– Como você preferir – diz ela. – Aceita um pouco de licor?
E, durante mais de uma hora, essa mulher admirável conversa comigo, uma conversa encantadora. Ela considera que eu serei certamente absolvido pela morte daquele canalha e que vou pegar talvez de dezoito meses a dois anos pelo resto.
No instante da despedida, ela me aperta a mão entre as suas, demoradamente, e me diz:
– Até breve, boa sorte.
Explodem os soluços.
O comandante me leva de volta à cela. No caminho, digo a ele:
– Comandante, o senhor tem a mulher mais nobre do mundo.
– Eu sei, Papillon, ela não é feita para viver aqui, é cruel demais para ela. E, no entanto, o que fazer? Afinal, daqui a quatro anos, me aposento.
– Aproveito este momento em que estamos sós, comandante, para lhe agradecer, porque graças ao senhor recebi o melhor tratamento possível. Sei que poderia ter prejudicado seriamente o senhor, se eu tivesse conseguido o meu intento.
– É verdade, você poderia ter-me causado grandes aborrecimentos. Apesar disso, quer saber de uma coisa? Você merecia ter conseguido.
E, já às portas do bloco das celas disciplinares, ele acrescenta:
– Adeus, Papillon. Que Deus lhe proteja, você vai precisar.
– Adeus, comandante.
Ah! sim, bem que era necessária a proteção de Deus para mim, porque o tribunal militar presidido por um oficial de quatro galões foi inexorável. Três anos por roubo e desvio de material pertencente ao Estado, profanação de sepultura e tentativa de evasão, e mais cinco anos, sem prejuízo da primeira pena, pela morte de Celier. Total: oito anos de reclusão. Se eu não tivesse sido ferido, é garantido que me condenavam à morte.
Esse mesmo tribunal, tão severo comigo, foi mais compreensivo ante um polaco da cavalaria francesa, chamado Dandosky, que tinha matado dois homens. O tribunal o condenou a apenas cinco anos e, no entanto, no caso dele havia premeditação indiscutível.
Dandosky era um padeiro encarregado de fazer somente o fermento. O horário dele era apenas das 3 às 4 da manhã. Como a padaria ficava no cais, diante do mar, ele passava todas as suas horas de folga pescando. Era um tipo tranqüilo, falava mal o francês e não se dava com ninguém. Esse condenado aos trabalhos forçados perpétuos dedicava todos os seus sentimentos de ternura a um belo gato preto de olhos verdes, que praticamente vivia com ele. Os dois dormiam juntos, o gato o seguia como um cachorro ao trabalho, para lhe fazer companhia. Em resumo, era uma grande estima entre ele e o bichinho. O gato o acompanhava na pesca, mas, quando fazia calor demais e não havia uma sombrinha por perto, voltava sozinho até a padaria e se deitava na rede de seu amigo. Ao meio-dia, quando batia o sino, saía ao encontro do polaco e pulava para pegar o peixinho com que o homem o atiçava, até o gato o agarrar.
Os padeiros moram todos juntos numa sala pegada à padaria. Um dia, dois forçados chamados Corrazi e Angelo convidam Dandosky a comer um guisado de coelho preparado por Corrazi, como ele fazia pelo menos uma vez por semana. Dandosky senta-se à mesa com eles e comem juntos; para a refeição, Dandosky levara, por sua vez, uma garrafa de vinho. À noite, o gato não voltou para casa. O polaco procurou o gato por toda parte em vão. Passa uma semana inteira e nada do gato. Triste com a perda do companheiro, Dandosky não se interessa mais por nada. Era mesmo triste que o único ser que Dandosky amava e que tão bem lhe retribuía esse amor tivesse desaparecido misteriosamente. A esposa de um vigia, quando soube da imensa dor de Dandosky, deu-lhe de presente um filhotinho de gato. Dandosky expulsou o gatinho, indignado, e perguntou à mulher como é que ela podia conceber que ele pudesse gostar de outro gato que não o dele; seria, dizia ele, uma grave ofensa à memória do amado desaparecido.