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– Uma impressão desagradável que tive por causa de um olhar cheio de curiosidade interessada, de um cara chamado Bébert Celier. Tenho a impressão de que ele viu Naric tirar a peça e enfiá-la debaixo da bancada da marcenaria, dentro de um barril de cal, e depois levá-la. Os dois cunhados iam caiar um prédio. Era por isso que eu estava preocupado.

Pergunto a Grandet:

– Esse Bébert Celier é da nossa choça; então, será que é um dedo-duro?

Ele me diz:

– Esse homem é liberto das Obras Públicas. Já viu tudo: batalhão de sentenciados da África, etc. É um desses soldados cabeçudos que passaram por todas as prisões militares do Marrocos e da Argélia, briguento, bom na faca, pederasta apaixonado por mocinhos e jogador. Nunca foi civil. Conclusão: não nos interessa para nada, é um cara extremamente perigoso. Passou a vida inteira nos trabalhos forçados. Se você está com dúvidas sérias sobre ele, pegue a dianteira, assassine ele hoje à noite, assim ele não terá tempo de te denunciar, se tiver essa intenção.

– Não há nenhuma prova de que ele seja dedo-duro.

– Isso é certo – diz Galgani -, mas também não há nenhuma prova de que ele seja um bom rapaz. Você sabe muito bem que forçados desse tipo não gostam de fugas. Elas perturbam demais a vidinha tranqüila e organizada deles. Para qualquer outra coisa, eles não dedam de jeito nenhum, mas, uma fuga, quem é que vai saber?

Consulto Matthieu Carbonieri. A opinião dele é que devemos matar Celier hoje à noite. Quer fazer o serviço ele mesmo. Cometo o erro de impedi-lo. Assassinar ou deixar matar alguém a partir de meras aparências é coisa que me repugna. E se Bourset fantasiou a história que contou? O medo poderia fazê-lo ver as coisas pelo avesso. Procuro saber alguma coisa através de Naric:

– Boa-Praça, você reparou alguma coisa de suspeito por parte de Bébert Celier?

– Eu, não. Saí com o barril nas costas para que o guarda-chaves da porta não enxergasse nada dentro. O plano combinado era que eu ia me plantar justo na frente do guarda-chaves, sem arriar o barril, esperando que meu cunhado chegasse. Era para o árabe sentir que eu não estava com nenhuma pressa de sair e assim evitar qualquer desconfiança dele, para ele não revistar o barril. Mas mais tarde meu cunhado me disse que teve a impressão de que Bébert Celier estava observando a gente atentamente.

– Qual a sua opinião?

– Que, em virtude do tamanho da peça, logo se vê que é para uma jangada e meu cunhado estava nervoso e com medo. Ele está imaginando que viu mais do que viu mesmo.

– Também acho. Não se fala mais nisso. Na hora da última peça, antes de agir, vocês localizem onde se encontra Bébert Celier. E com ele tomem as mesmas precauções que tomam com um guarda.

A noite inteira eu passei jogando um jogo animadíssimo, a marselhesa. Ganhei 7 000 francos. Quanto mais eu jogava a olho, mais eu ganhava. Às 4 e meia, saio, a pretexto de fazer o meu trabalho. Deixo o antilhano fazendo o trabalho para mim. A chuva parou e lá pelo meio da noite, ainda bem escuro, vou até o cemitério. Conserto a terra com os pés, porque não acho o ancinho, mas, com os sapatos que uso, o negócio fica bem ajeitado. Às 7 horas, quando desço para a pesca, já está um sol maravilhoso. Encaminho-me para o extremo sul de Royale, onde tenho a intenção de lançar a jangada na água. O mar está alto e forte. Não sei, mas tenho a impressão de que não vai ser fácil se afastar da ilha sem ser jogado nos rochedos por uma onda. Ponho-me a pescar e logo apanho uma grande quantidade de peixes. Num instante, apanho mais de 5 quilos. Paro, depois de lavá-los com água do mar. Estou preocupado e cansado, depois dessa noite passada num jogo louco. Sentado à sombra, me recupero, e digo a mim mesmo que esta tensão em que vivo há mais de três meses está chegando ao fim e, pensando no caso de Celier, torno a concluir que não tenho o direito de assassiná-lo.

Vou falar com Matthieu. Do muro do seu jardim se vê bem o túmulo. Pelo caminho tem terra. Ao meio-dia, Carbonieri vai varrê-la. Passo pela casa de Juliette, dou a ela metade dos peixes. Ela diz:

– Papillon, tive sonhos maus com você; vi você cheio de sangue e depois acorrentado. Não faça besteiras, iria me doer demais se lhe acontecesse alguma coisa. Estou tão transtornada com esse sonho, que nem tomei banho nem me penteei. De binóculo, procurava o lugar onde você estava pescando e não achei. Onde você apanhou este peixe?

– Do outro lado da ilha. Por isso é que a senhora não me via.

– Por que vai pescar tão longe, onde eu não posso ver você de binóculo? E se uma onda o leva? Ninguém vai ver, ninguém vai ajudar você a escapar vivo dos tubarões.

– Ora, não exagere!

– Você acha que eu exagero? Eu proíbo você de pescar atrás da ilha e, se me desobedecer, eu mando retirar a sua autorização de pesca.

– Ora, vamos, seja sensata, minha senhora. Para que a senhora fique satisfeita, eu vou dizer ao moço de serviços o local onde eu vou pescar.

– Está bem. Você está com jeito de estar cansado.

– É, vou subir para me deitar no campo.

– Certo, mas estou à sua espera às 4 horas, para tomar café. Você vem?

– Sim, senhora. Até logo.

Só me faltava mais essa para me intranqüilizar: o sonho de Juliette. Como se eu já não tivesse bastante problemas concretos, precisava ainda de mais alguns, sonhados!

Bourset conta que se sente realmente observado. Já faz quinze dias que esperamos pela última peça de 1 metro e meio. Naric e Quenier dizem que não vêem nada de anormal, no entanto Bourset persiste em não querer fazer a peça. Se ela não tivesse cinco chanfraduras que têm de se encaixar sem 1 milímetro de folga, Matthieu teria fabricado ela no jardim. Realmente é nela que precisam se encaixar as cinco outras nervuras da jangada. Naric e Quenier estão encarregados de reformar a capela, e assim tiram e trazem facilmente muito material da oficina. E, ainda por cima, utilizam às vezes uma carreta puxada por um pequeno búfalo. Era preciso aproveitar estas circunstâncias.

Bourset, pressionado por nós, contra a sua vontade, faz a peça. Um dia, ele nos jura que, quando ele vai embora, mexem na peça e depois a recolocam no lugar. Falta talhar uma chanfradura na extremidade. Decidimos que Bourset talhe a chanfradura e depois coloque a madeira debaixo da sua bancada; ele deverá colocar em cima um fio de cabelo, para verificar depois se ela foi mexida: Ele faz a chanfradura e, às 6 horas, é o último a sair da oficina, após verificar que não há mais ninguém lá dentro, além do guarda. A peça está em seu lugar com o fio de cabelo. Ao meio-dia estou no campo, à espera da chegada dos trabalhadores da oficina, oitenta homens. Naric e Quenier estão Já, mas nada de Bourset. Um alemão vem para o meu lado e me entrega um bilhete bem fechado e colado. Verifico que não foi aberto. Leio: “O fio de cabelo desapareceu, quer dizer que mexeram na peça. Pedi ao guarda para ficar trabalhando durante a hora da sesta, para terminar uma caixinha de pau-rosa que estou fazendo. O guarda me deu autorização. Vou retirar a peça e colocá-la no lugar das ferramentas de Naric. Avise eles. É preciso que às 3 horas eles saiam imediatamente com a peça. Talvez a gente possa fazer isso antes de chegar o cara que mexe na peça”.

Naric e Quenier concordam. Estão entre os primeiros que esperam a hora da entrada na oficina. Na hora em que a turma vai começar a entrar na oficina, dois caras vão começar a brigar na frente da porta. Pedimos esse favor a dois conterrâneos de Carbonieri, dois corsos de Montmartre: Massani e Santini. Eles não perguntam por que, e isso é bom. Naric e Quenier deverão aproveitar o momento para tornar a sair depressa, com um material qualquer, como se estivessem preocupados em chegar logo a seu local de trabalho e não ligassem a mínima para o incidente. Todos concordamos que ainda temos uma oportunidade. Se der certo, eu é que devo ficar bem quietinho durante um mês ou dois, pois não resta dúvida de que alguém ou vários estão sabendo que uma jangada está sendo preparada. Eles que descubram quem a tem e onde a colocou.