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– Não é nada disso que me contou meu informante – diz o guarda.

– Esse tal de Bébert Celier, que é o seu informante, pode muito bem servir-se deste caso para se vingar de alguém, comprometendo-o falsamente. Quem é que pode confiar num dedo-duro?

– Em suma – diz o comandante -, você é oficialmente acusado de roubo e de desvio de material pertencente ao Estado, de profanação de sepultura e de tentativa de fuga. Queira ter a bondade de assinar o documento.

– Só assino se se acrescentar minha declaração a respeito de Carbonieri, Bourset e os dois cunhados Naric e Quenier.

– Concordo. Acrescente isso no documento.

Assino. Não consigo exprimir com clareza tudo o que se desenrola dentro de mim desde esse fracasso de última hora. Estou como louco dentro desta cela, mal como, não ando, mas fumo, sem parar, um cigarro atrás do outro. Por sorte, Dega me abastece fartamente de fumo.

Todos os dias, fazemos uma hora de marcha pela manhã, ao sol, no pátio das celas disciplinares.

Hoje de manhã, o comandante veio falar comigo. Coisa curiosa, ele, que seria o mais prejudicado se a fuga tivesse sido levada a efeito, é quem tem menos raiva de mim.

Fala-me, sorrindo, que sua esposa disse que era normal que um homem, se não está podre, tente fugir. Com muita habilidade, ele procura ver se confirmo a cumplicidade de Carbonieri. Tenho a impressão de que o convenci, de que lhe expliquei bem que era praticamente impossível Carbonieri recusar-me ajuda por alguns momentos, para retirar as esteiras.

Bourset mostrou o bilhete de ameaça e o desenho feito por mim. Quanto a Bourset, aliás, o comandante está completamente convencido de que as coisas se passaram assim mesmo. Pergunto a ele a quanto pode, na sua opinião, chegar essa acusação de roubo de material. Ele me diz:

– No máximo, dezoito meses.

Em suma, recomeço a subir a encosta do abismo em que afundara. Recebi um recado de Chatal, o enfermeiro. Avisou-me que Bébert Celier está em quarto isolado, no hospital, com perspectiva de ser desinternado com um diagnóstico raro: abscesso no fígado. Deve ser um estratagema combinado entre a administração e o médico, para proteger Celier contra represálias.

Nunca revistaram nem a minha cela nem a mim. Aproveito para mandar vir uma faca. Mando dizer a Naric e a Quenier que requeiram uma acareação entre o vigia da oficina, Bébert Celier, o marceneiro e eu, e solicitem ao comandante que, após esse confronto, tome a decisão que achar mais justa em relação aos dois cunhados: ou prisão preventiva, ou punição disciplinar, ou liberdade limitada ao interior do campo…

Durante o passeio de hoje, Naric me disse que o comandante aceitou. A acareação vai ser feita amanhã, às 10 horas. A essa audiência assistirá um guarda-chefe que funcionará como instrutor. Passo a noite inteira tentando racionalizar minhas emoções, pois tenho intenção de matar Bébert Celier. Não consigo raciocinar. Não, seria injusto demais que esse homem fosse desinternado após ter prestado esse serviço, e que depois, da Terra Grande, ele se vá embora numa bela fuga, como recompensa por ter impedido uma outra fuga. Sim, mas eu, eu posso ser condenado à morte, podem me acusar de premeditação. Pois que seja. É a minha conclusão, tão desesperado estou. Quatro meses de esperança, de alegria, de medo de ser apanhado, de inventivas e, afinal, quando estava a ponto de conseguir, acabar tudo tão lamentavelmente pela língua de um dedo-duro. Aconteça o que acontecer, amanhã eu vou ver se mato Celier!

A única maneira de não ser condenado à morte é fazer que ele puxe a faca dele. Para conseguir isso, é preciso que ostensivamente eu o faça ver que estou com a minha faca aberta. Aí, é certo que ele puxe a dele. Seria preciso fazer isso um pouco antes, ou imediatamente depois da acareação. Não posso matá-lo durante a acareação, me arrisco a que um guarda me dê um tiro de revólver. Conto com a negligência crônica dos guardas.

Passo a noite inteira lutando contra essa idéia. Não consigo vencê-la. Existem verdadeiramente na vida coisas imperdoáveis. Sei que não se tem direito de fazer justiça com as próprias mãos, mas isso é coisa para gente de outra classe social. Como admitir que não se possa pensar em punir inexoravelmente um indivíduo tão abjeto? Não lhe fiz mal algum, a esse rebotalho de caserna, ele nem mesmo me conhece. Portanto, ele me condenou à reclusão sem ter nada contra mim. O que ele fez foi tentar me enterrar para poder renascer. Não, não e não! É impossível eu deixar ele aproveitar esse seu ato nojento. Impossível. Sinto que estou perdido. Perdido por perdido, que ele o seja também, e ainda mais do que eu. E se me condenarem à morte? Seria bem estúpido morrer por um personagem tão ignóbil. Consigo chegar a prometer a mim mesmo uma única coisa: se ele não puxar a faca dele, não o mato.

Não dormi nem um pouco a noite inteira, fumei um maço inteiro de cigarros. Restam-me dois cigarros quando chega o café da manhã, às 6 horas. Tamanha é a minha tensão, que, mesmo diante do guarda – embora seja proibido -, digo ao distribuidor de café:

– Você podia me arranjar uns cigarros ou um pouco de fumo, com a permissão aqui do chefe? Estou em ponto de bala, Sr. Antartaglia.

– Tá bom, dá para ele, se você tem aí. Eu não fumo. Sinceramente, Papillon, tenho pena de você. Eu, que sou corso, aprecio os homens, detesto a falta de caráter.

Quinze para as dez, estou no tribunal à espera da hora de entrar na sala. Naric, Quenier, Bourset, Carbonieri estão presentes. O guarda que nos vigia é Antartaglia, o mesmo do café. Conversa em corso com Carbonieri. Entendo que ele está dizendo que é uma pena o que lhe aconteceu, a Carbonieri, que bem pode pegar três anos de reclusão. Nesse momento, a porta se abre e entram na sala o árabe do coqueiro, o árabe guarda da porta da oficina e Bébert Celier. Assim que me vê, ele faz um movimento de recuo, mas o guarda que o acompanha lhe diz:

– Entre e coloque-se à parte, aqui à direita. Antartaglia, não deixe eles se comunicarem.

Pronto, estamos a menos de 2 metros um do outro. Antartaglia diz:

– É proibido falar entre os dois grupos.

Carbonieri continua sua conversa em corso com seu conterrâneo que vigia os dois grupos. O guarda ajeita o nó do cordão do sapato, faço um sinal a Matthieu, para ele vir um pouco mais para a frente. Ele imediatamente entende a situação, olha para o lado de Bébert Celier e escarra nessa direção. Quando o guarda se levanta, Carbonieri começa a falar com ele sem parar e monopoliza sua atenção tão completamente, que dou um passo para a frente sem que o guarda perceba. Abro a faca na palma da minha mão, de jeito que só Bébert Celier possa ver. E, com uma rapidez inesperada, ele puxa a sua faca, que estava aberta dentro da calça, e me dá um golpe que me abre fundo o músculo do braço direito. Eu, que sou canhoto, com um único golpe enfio-lhe a faca no peito até o cabo. Um grito de animal: “A-a-ah”. Ele cai como saco de batatas. Antartaglia, de revólver em punho, me diz:

– Sai daí, rapaz, sai daí. Não bate nele no chão, senão sou obrigado a lhe dar um tiro e isso não quero.

Carbonieri se aproxima de Celier e com o pé mexe a cabeça dele. Diz uma frase em corso. Entendo que ele diz que o outro está morto. O guarda repete:

– Me dá a sua faca, rapaz.

Eu dou, ele guarda o revólver no estojo, vai para a porta de ferro e bate. Um guarda abre e ele diz ao outro:

– Mande trazer uma maca, para levar um morto.

– Quem está morto? – indaga o guarda.

– Bébert Celier.

– Ah! Pensei que fosse Papillon.

Mandam-nos de volta para as celas. Está suspensa a acareação. Carbonieri me diz, antes de entrar no corredor:

– Papi, meu filho, desta vez você entrou pelo cano mesmo.

– Certo, mas eu estou vivo e ele está morto.

O guarda volta só, abre a porta bem devagar e me diz, ainda meio abalado:

– Bata na porta, fale que você está ferido. Foi ele que atacou primeiro, eu vi bem.