– Como quiser – teve o cinismo de me responder. E partiu. Felizmente, pois eu estava prestes a explodir de indignação.
Um, dois, três, quatro, cinco, meia volta. Um, dois, três, quatro, cinco, meia volta. Caminho, caminho, incansavelmente, sem parar, hoje caminho com raiva, minhas pernas estão tensas, não estão relaxadas como de hábito. Depois do que acaba de acontecer, dir-se-ia que eu tenho necessidade de chutar alguma coisa. Que posso chutar? Sob os meus pés só tem cimento. Mas» chuto muita coisa, enquanto faço a minha caminhada. Chuto a tibieza desse papalvo que, pelas boas graças da administração, se presta a fazer coisas tão deploráveis. Chuto a indiferença de uma classe de homens em face do sofrimento e da dor de outra classe de homens. Chuto a ignorância do povo francês, sua falta de interesse ou de curiosidade por saber para onde vão e como são tratados os homens que constituem a carga embarcada a cada dois anos em Saint-Martin-de-Ré. Chuto os jornalistas dos assuntos policiais que, ante determinado crime, escrevem artigos escandalosos sobre um homem e meses depois já nem sequer se lembram de que ele existe. Chuto os padres católicos que ouviram confissões, sabem o que se passa nas prisões francesas do exterior e se calam. Chuto o sistema processual que se transforma em competição oratória entre quem acusa e quem defende. Chuto a Liga dos Direitos do Homem e do Cidadão, cuja organização não ergue a voz para dizer: “Parem com essa guilhotina branca, suprimam o sadismo coletivo que existe nos empregados da administração”. Chuto todas as organizações ou associações que nunca interrogam os responsáveis por esse sistema para lhes perguntar como e por que, no caminho da podridão, desaparecem em cada dois anos 80 por cento dos que o povoam. Chuto os atestados de óbito da medicina oficial: suicídios, miséria psicológica, morte por subalimentação contínua, escorbuto, tuberculose, loucura furiosa, senilidade precoce. Que tenho, ainda, para chutar? De qualquer maneira, depois do que acaba de acontecer, não estou em condições de caminhar normalmente: a cada passo meu, parece que estou esmagando alguma coisa.
Um, dois três, quatro, cinco… Transcorrendo lentamente, as horas aplacam pela fadiga minha revolta muda.
Mais dez dias e terei cumprido exatamente a metade da minha pena de reclusão. Na verdade, é um belo aniversário a ser festejado, pois, descontada essa gripe forte, estou com boa saúde. Não estou maluco e nem em vias de enlouquecer. Estou seguro, cem por cento seguro de que sairei vivo e equilibrado do ano que vai começar agora.
Acordo ouvindo vozes abafadas. Escuto:
– Ele está inteiramente duro, Sr. Durand. Como foi que o senhor não percebeu antes?
– Não sei, chefe. Como ele ficou pendurado no canto da barra da janelinha que dá para a passarela, passei por ali várias vezes sem ver a coisa.
– Não tem importância. Mas o senhor deve reconhecer que é ilógico o fato de não ter notado.
Meu vizinho da esquerda se suicidou, é o que eu percebo. Retiram-no. A porta se fecha. Cumpriram o regulamento com todo o rigor, pois a porta se abriu a se fechou na presença de uma “autoridade superior”, o comandante da reclusão, cuja voz pude reconhecer. É o quinto que desaparece à minha volta nestas últimas dez semanas.
Chega o dia do aniversário. Na bacia vem uma lata de leite condensado Nestlé. É uma loucura dos meus amigos. Deve ter custado caríssimo e há de ter acarretado riscos graves para me chegar às mãos. Tive um dia de vitória sobre a adversidade. Prometi então a mim mesmo que não decolaria para outras paragens. Estou aqui, na reclusão. Já passou um ano desde que cheguei e me sinto capaz de empreender a fuga amanhã mesmo, se tiver oportunidade. É uma constatação positiva e me sinto orgulhoso de fazê-la.
Pelo varredor da tarde – coisa inusitada – chega um bilhete dos meus amigos: “Coragem. Só te resta um ano por cumprir. Sabemos que estás bem de saúde. Nós estamos bem, normalmente, e te abraçamos. Louis – Ignace. Se puderes, manda imediatamente algumas palavras pelo portador de agora”.
No pequeno papel branco que veio junto com o bilhete, escrevo: “Obrigado por tudo. Estou forte e espero continuar bem graças a vocês, dentro de um ano. Podem me mandar notícias de Clousiot e Maturette?” De fato, o varredor volta e arranha a minha porta. Passo-lhe o papel, que desaparece logo. Durante todo esse dia e parte da noite, permaneço com os pés em terra firme, na situação em que várias vezes já tinha prometido a mim mesmo que iria permanecer. Dentro de um ano, serei mandado para uma das ilhas. Royale ou Saint-Joseph? Vou me embriagar de fumo e de conversa e logo tratar de combinar a próxima fuga.
Com confiança no meu destino, enfrento a manhã do primeiro desses 365 dias que me restam por fazer. Tinha razão de estar confiante, no que se refere aos oito meses que se seguiram. No nono mês, entretanto, as coisas se estragaram. De manhã, na hora da limpeza das bacias, o entregador foi surpreendido com a mão na massa, no momento em que me passava a bacia na qual pusera o coquinho e os cinco cigarros.
O incidente era tão grave, que durante alguns minutos a regra do silêncio foi esquecida. As pancadas recebidas pelo desgraçado foram claramente ouvidas e, em seguida, ouviu-se o ruído de um homem estertorando, como se estivesse morrendo. O visor da minha porta se abriu e a cabeça congestionada de um guarda me gritou:
– Você não perde nada por esperar!
– Pode vir, canalha! – respondi-lhe, tenso, por ter ouvido o tratamento dispensado ao infeliz que me ajudava.
Isso ocorrera às 7 horas. Foi somente às 11 que uma delegação, chefiada pelo subcomandante, veio me buscar. Abriram a porta que há vinte meses se fechara à minha passagem e desde então nunca fora aberta. Fiquei no fundo da cela, empunhando o canecão, em atitude de defesa, decidido a brigar o quanto pudesse, por duas razões: primeiro, para que alguns guardas não batessem impunemente; depois, para ser morto mais depressa. Não houve nada disso. Falaram:
– Prisioneiro, saia.
– Se é para me baterem, fiquem sabendo que vou me defender e que, portanto, não vou sair daqui para ser atacado por todos os lados. Aqui, estou em melhores condições para arrebentar o primeiro que me tocar.
– Charrière, nós não vamos bater em você.
– Quem me garante?
– Garanto eu, o subcomandante da reclusão.
– E você tem palavra?
– Não insulte, que é inútil. Por minha honra, prometo que você não será espancado. Agora saia.
Olho para o canecão, que continuo a empunhar.
– Pode guardá-lo, que não vai ser utilizado.
– Vá lá.
Entre seis guardas e o subcomandante, saio e percorro todo o corredor. Chegando ao pátio, a cabeça começa a girar e os olhos, feridos pela luz, são obrigados a se fechar. Finalmente percebo o aposento onde somos recebidos. Há uma dúzia de guardas nele. Sem me empurrar, fazem-me entrar na sala da administração. No chão, ensangüentado, está um homem que geme. Num relógio de parede vejo que são 11 horas e penso: “Há quatro horas que torturam esse desgraçado”. O comandante está sentado atrás de sua escrivaninha, o subcomandante sentado a seu lado.
– Charrière, há quanto tempo você recebe comida e cigarros?
– Aquele ali já lhes deve ter dito.
– Estou perguntando a você.
– Sou amnésico, não sei o que acontece na véspera.
– Está brincando comigo?
– Não. É estranho que isso não conste da minha ficha. Sofro de amnésia desde que levei uma pancada na cabeça.
O comandante fica tão surpreendido com essa resposta, que diz:
– Perguntem a Royale se existe alguma referência a isso na ficha dele.
Enquanto telefonam, ele continua:
– Mas você se lembra de que se chama Charrière?
– Lembro.
E, rápido, para desconcertá-lo ainda mais, passo a falar como um autômato:
– Meu nome é Charrière, nasci em 1906 em Ardèche e fui condenado à prisão perpétua em Paris, no distrito do Sena.