Não estou mais na cela. Nem mesmo sei se existe a reclusão, se existem Saint-Joseph e as ilhas. Rolo na areia, limpando as mãos nestes grãos tão finos, que até parecem de farinha. Depois vou até o mar, para bochechar com essa água tão límpida e também tão salgada. Pego a água com as mãos e passo-a na cara. Esfregando o pescoço, percebo que meus cabelos estão muito compridos. Quando Lali voltar, vou pedir a ela para cortá-los. Passo a noite toda com minha tribo. Tiro o cache-sexe de Zoraima e lá, na areia, em pleno sol, acariciado pelo vento do mar, possuo-a. Ela geme amorosamente, como costuma fazer quando goza. Talvez o vento leve até Lali essa música amorosa. De qualquer maneira, Lali está nos vendo, está percebendo que nós estamos abraçados, que estamos fazendo o amor, pois a distância não é grande. Na verdade, ela deve ter nos visto, porque o barco volta logo para a praia. Ela desce, sorrindo. Durante o caminho da volta desfaz as tranças e passa os dedos compridos pelos cabelos molhados, que começam a secar, por obra do vento e do sol deste dia maravilhoso. Caminho na direção dela. Com o braço direito, ela me envolve e me puxa na direção da nossa cabana. Enquanto andamos juntos, ela não deixa de me fazer entender: “eu também, eu também”. Quando entramos me derruba numa rede que está dobrada no chão e me faz esquecer dentro dela que o mundo existe. Zoraima é muito inteligente e não quis entrar enquanto, segundo seus cálculos, nossos beijos ainda não tinham terminado. Quando ela chega, cansados e nus, nós ainda estamos deitados na rede. Vem sentar-se perto de nós e, dando uns tapinhas nas bochechas da irmã, repete-lhe uma palavra que sem dúvida deve significar qualquer coisa como “gulosa”. Depois, castamente, veste Lali e me cobre com o meu cache-sexe, com gestos de pudica ternura. Passei a noite inteira na aldeia guajira. Não dormi nada. Nem sequer me deitei para ver através das pálpebras fechadas as cenas vividas. Andando sempre, numa espécie de hipnose, sem qualquer esforço da minha vontade, voltei àquele dia tão delicioso, vivido há cerca de seis meses.
A luz se apaga e percebe-se que está chegando o dia, invadindo a escuridão da cela, expulsando essa espécie de neblina negra que me impede de ver o que está por baixo, a meu redor. Um sinal de apito. Escuto o barulho das camas que se recolhem às paredes e o ruído do meu vizinho que ajeita seu leito embutido. Meu vizinho tosse e ouço um pouco de água caindo. Como é que a gente se lava aqui?
– Senhor guarda, como é que a gente se lava aqui?
– Prisioneiro, você está perdoado porque não sabia, mas não tem o direito de falar com o guarda, senão pega um castigo duro. Para se lavar, você deve se colocar embaixo da bacia, pegar a água com o canecão, derramá-la com uma das mãos e se lavar com a outra. Você não desdobrou a coberta?
– Não.
– Dentro dela há uma toalha, pode verificar.
Essa agora! Não se pode falar com a sentinela? Por motivo nenhum? E se a gente está sofrendo muito por alguma razão? Se a sente está morrendo? Uma crise cardíaca, uma crise de apendicite ou uma crise de asma muito forte? É proibido gritar por socorro aqui, mesmo em caso de risco de vida? É o cúmulo! Mas não é, não. É normal. Seria muito fácil armar um escândalo quando a resistência acaba e os nervos explodem. Seria fácil fazê-lo para ouvir vozes, para ouvir falarem, ainda que fosse para te dizerem: “Morre, mas fica quieto”. Vinte vezes por dia, duas dezenas destes 250 homens que devem estar aqui provocariam uma discussão qualquer para se desfazer, como se fosse num estrondo, da excessiva pressão do gás existente dentro da cabeça deles.
Quem teve a idéia de construir estas jaulas para leões não pode ter sido um psiquiatra: um médico não se desonraria a esse ponto. Também não há de ter sido um médico quem estabeleceu o regulamento. As duas pessoas que fizeram o conjunto, no entanto, o arquiteto e o funcionário que estudou os pormenores da execução da pena, ambos são dois monstros repugnantes, dois psicólogos viciados e cruéis, cheios de ódio sádico pelos condenados.
Dos cárceres da central de Beaulieu, em Caen, por mais fundos que fossem, com dois andares de porões metidos terra adentro, ainda podia se filtrar e um dia chegar ao público o eco das torturas e dos maus-tratos sofridos por alguns dos presos.
A prova é que, quando tiveram de me tirar as algemas e as correntes que prendiam até meus polegares, vi no rosto dos guardas sinais de medo; sem dúvida eles estavam com medo de ter aborrecimentos.
Aqui, nesta reclusão, onde só entram os funcionários da administração, eles ficam todos muito tranqüilos, nada lhes pode acontecer.
Clac, clac, clac, todas as janelinhas das portas são abertas. Chego perto da minha, arrisco uma olhada e depois meto uma parte da cabeça e logo toda a cabeça para fora. Olho à esquerda e à direita, vejo uma porção de cabeças no corredor. Compreendo imediatamente que, assim que as janelinhas se abrem, todas as cabeças se esticam para fora. O vizinho da direita me olha, sem exprimir absolutamente nada no olhar. Sem dúvida está embrutecido pela masturbação. É pálido e flácido, com uma pobre fisionomia opaca de idiota. O vizinho da esquerda me diz, rapidamente:
– A quanto tempo?
– Dois anos.
– Eu a quatro. Já completei um. Seu nome?
– Papillon.
– O meu é Georges, Jojo de Auvergne. Onde te prenderam?
– Em Paris. E você?
Não teve tempo de responder: o café, com a bolota de pão, estava chegando duas celas antes. Recolheu a cabeça e eu fiz o mesmo. Estendo o canecão, enchem-no de café e depois me dão uma bolota de pão. Como não apanho o pão com suficiente rapidez, fecham a janelinha e o pão rola pelo chão. Dali a menos de quinze minutos, o silêncio já voltou. Deve haver duas distribuições, uma em cada corredor, porque a coisa é feita depressa demais. Meio-dia, chega uma sopa com um pedaço de carne cozida. À noite, um prato de lentilhas. Durante dois anos, esse cardápio só varia de noite: lentilhas, feijão-mulatinho, ervilhas, creme de ervilhas, feijão branco ou arroz. A refeição do meio-dia é sempre a mesma.
De quinze em quinze dias, também, a gente mete a cabeça pela janelinha e um preso, com uma máquina de cortar cabelo, nos corta a barba.
Há três dias que estou aqui. Há uma coisa que me preocupa. Em Royale, meus amigos disseram que me mandariam algo para comer e cigarros. Não recebi coisa alguma. Gostaria de saber, aliás, como eles poderiam fazer tamanho milagre. Por isso, não me surpreendo muito de nada ter recebido. Deve ser muito perigoso fumar; e, de qualquer maneira, seria um luxo. Comer, sim, deve ser considerado vital, porque a sopa do meio-dia é água quente com dois ou três fiapos de folhas de verdura e um pedaço de mais ou menos 100 gramas de carne cozida. De noite, são os feijões w alguns legumes secos que aparecem nadando na água. Para ser franco, desconfio que não é a administração que deixa de nos dar uma refeição razoável e sim os presos que distribuem ou preparam a comida, Essa idéia me ocorre numa noite em que é um sujeito pequeno de Marselha quem está distribuindo os legumes: a concha vai até o fundo do caldeirão e, quando é ele, recebo mais legumes do que água. Com os outros dá-se o contrário: mexem um pouco a mistura, mas enchem a concha na superfície, com pouco legume e muita água. Essa subalimentação é extremamente perigosa. Para ter firmeza de vontade moral é necessária certa força física.
Estão varrendo o corredor, acho que estão varrendo tempo demais diante da minha cela. A vassoura passa insistentemente na base da porta e percebo um pedaço de papel branco aparecendo. Entendo logo que me passaram algo pela soleira mas não puderam passá-lo direito e estão esperando que eu puxe a coisa antes de ir varrer outros lugares. Puxo o papel, abro-o, é um bilhete escrito com tinta fosforescente. Espero que o guarda passe e leio às pressas:
“Papi, todos os dias, a partir de amanhã, você receberá na bacia cinco cigarros e um coquinho. Quando comer o coquinho, mastigue bem para aproveitar e engula o caroço. Fume de manhã, na hora da limpeza das bacias. Nunca fume após o café da manhã, mas pode fumar logo depois da sopa do meio-dia e de noite, quando acabar os legumes. Junto deste bilhete vai papel sobrando e um lápis; quando você quiser algo, peça por escrito. Quando o varredor passar diante da porta, arranhe a porta com os dedos; se ele também arranhar, empurre o seu bilhete. Nunca passe o bilhete antes dele ter respondido ao sinal. Guarde o papel na orelha e o pedaço de lápis em algum lugar num canto da cela, para não serem descobertos. Coragem. Nós te abraçamos. Ignace – Louis”.