É um sinal de apito, na verdade, que anuncia que podemos baixar da parede as placas de madeira que nos servirão de cama. Ouço uma voz grossa que diz:
– Os novatos ficam sabendo que, a partir de agora, se quiserem, podem abrir os leitos embutidos e deitar.
Interessam-me somente as palavras “se quiserem”. Continuo, portanto, a andar. O momento é crucial demais para dormir. É preciso que eu me habitue a esta jaula aberta no teto. Um, dois, três, quatro, cinco, já consegui um ritmo para o meu passeio, com a cabeça baixa, as mãos atrás das costas, a distância dos passos rigorosamente calculada, vou e volto interminavelmente, como um pêndulo, como um sonâmbulo. Chegando ao final dos cinco passos, já nem vejo a parede, apenas roço nela ao fazer meia volta, de passagem, nessa maratona que não tem chegada nem tempo de duração.
Na verdade, Papi, esta “devoradora de homens” não é de brincadeiras. Quando a sombra do guarda se projeta na parede, o efeito é estranho. Se a gente levanta a cabeça para vê-lo, a situação ainda fica mais deprimente: fica-se com o ar de um leopardo numa fossa, observado, de cima, pelo caçador que acaba de capturá-lo. A impressão é horrível, precisarei de alguns meses para habituar-me a ela.
Cada ano tem 365 dias. Dois anos são 730 dias, se um deles não for bissexto. Essa idéia me faz sorrir. Saber que 730 dias ou 731 é a mesma coisa. Por que é a mesma coisa? Não é verdade. Um dia a mais são mais 24 horas e 24 horas é um bocado de tempo. Setecentos e trinta dias de 24 horas é muito mais tempo. Quantas horas dá o total? Será que eu consigo calcular de cabeça? Como fazer essa conta? É impossível. Por quê? Posso fazê-la. Vejamos um pouco. Cem dias são 2 400 horas. É muito fácil multiplicá-las por sete, dá 16 800 horas. Ficam por somar ainda trinta dias, que dão 720 horas. Dezesseis mil e oitocentas horas mais 720 dão um total geral de 17 520 horas, se não me enganei nas contas. Prezado Sr. Papillon, o senhor tem 17 520 horas para ir morrendo nesta jaula de paredes lisas, especialmente fabricada para feras selvagens. Quantos minutos precisarei passar aqui? Não interessa. As horas, está certo, mas por que calcular os minutos? Não exageremos. Por que não os segundos? Se isso tem importância ou não, o fato é que eu não estou interessado. Sozinho comigo mesmo, devo encher com alguma coisa esses dias, essas horas, esses minutos. Quem estará à minha direita? E à minha esquerda? E atrás de mim? Se as celas estão ocupadas, será que esses três homens não deverão estar perguntando também a eles próprios quem acaba de entrar na 234?
Ouço o ruído abafado de uma coisa que acaba de cair atrás de mim, na minha cela. Que será? Será que o meu vizinho teve suficiente habilidade para conseguir me jogar alguma coisa através da grade? Procuro descobrir o que é. Mal consigo avistar um troço comprido e estreito. No momento em que vou apanhá-la, a coisa -. que, no escuro, eu mais adivinho do que vejo – começa a se mexer e se desloca rapidamente na direção da parede. Quando ela se mexeu, tive um movimento de recuo. Chegando ao muro, ela começa a subir, mas logo cai por terra. A parede é tão lisa, que a coisa não consegue subir por ela. Deixo-a tentar três vezes a subida; quando ela tenta pela quarta vez e cai, esmago-a com o pé. Sinto algo mole sob a meia grossa. O que poderá ser? Ponho-me de joelhos e olho-a o mais de perto que posso. Por fim, consigo distinguir: é uma enorme centopéia de mais de 20 centímetros de comprimento e dois dedos de largura. Sinto-me tão repugnado, que não a apanho para pôr na bacia; empurro-a com o pé para baixo da cama. Amanhã, durante o dia, verei. Aliás, tive ocasião de ver muitas centopeias: elas caem do teto do prédio, lá de fora. Aprendi a deixá-las caminharem sobre o meu corpo nu, quando estou deitado, sem pegá-las e sem fazer-lhes mal. Tive ocasião de aprender quanto sofrimento pode custar um erro tático quando uma centopéia está em cima da gente. Uma picada desse bicho nojento queima horrivelmente durante seis dias e deixa uma febre de cavalo que dura mais de doze dias na pessoa.
De qualquer maneira, será uma distração, um derivativo para os meus pensamentos. Quando eu estiver acordado e cair uma centopéia, torturá-la-ei com a vassoura durante o máximo de tempo que me for possível, ou então me divertirei com ela, deixando-a esconder-se e tentando encontrá-la depois.
Um, dois, três, quatro, cinco… Um silêncio total. Ninguém ronca aqui? Ninguém tosse? É verdade que está fazendo um calor de abafar tudo. E estamos de noite! Como não deve ser de dia… Meu destino é o de viver com as centopeias. Quando a água subia no calabouço de Santa Marta, chegava uma grande quantidade delas; eram menores, mas da mesma família destas. Em Santa Marta havia inundação todos os dias, é verdade, mas a gente falava, gritava, escutava os cantos, as vozes e as divagações dos loucos temporários ou definitivos. Não é a mesma coisa. Se eu tivesse que escolher, escolheria Santa Marta. O que estás dizendo é ilógico, Papillon. A opinião unânime é a de que o máximo que um homem poderia resistir lá embaixo seriam seis meses. Ora, aqui, há muitos que têm penas de quatro, cinco anos, ou até mais, por cumprir. Que eles tenham sido condenados a essas penas é uma coisa; mas que as cumpram é outra. Quantos se suicidam? Não vejo como alguém possa se suicidar. No entanto, é possível. Não é fácil, porém a gente pode se enforcar. Fabricando uma corda com as calças, utilizando a vassourinha para passar a ponta da corda por uma das barras de ferro da janela, trepado na cama. Fazendo essa operação bem junto ao chão do caminho da ronda, é provável que o guarda não veja a corda. Quando o guarda tiver acabado de passar, você se balança no vazio; e, quando ele voltar, você já está frito. Aliás, ele não terá muita pressa em descer e abrir a cela para soltar da corda o corpo do enforcado. Abrir a cela? Ele não pode. Está escrito na porta: “É proibido abrir essa porta sem ordem superior”. Então, não precisa se preocupar, quem quiser se suicidar tem muito tempo para isso, antes que venham tirá-lo da corda “por ordem superior”.
Toda essa minha descrição talvez não seja muito movimentada e interessante para as pessoas que gostam da ação e dos incidentes. Se eu as estiver aborrecendo, essas pessoas podem pular as páginas. No entanto, creio que devo descrever com a maior fidelidade possível essas primeiras impressões, esses primeiros pensamentos, que me apareceram no primeiro contato com a nova cela, essa reação das minhas primeiras horas de enterrado vivo.
Estou caminhando há muito tempo. Ouço um murmúrio no meio da noite, é a mudança da guarda. O guarda anterior era grande e magro, este de agora é gordo e baixo. Arrasta um pouco os pés.
O barulho dos pés se arrastando se percebe duas celas antes e permanece até duas ceias depois. Não é cem por cento silencioso, como o outro. Continuo a andar. Deve ser tarde. Que horas devem ser? Amanhã terei certo controle do tempo. Graças às quatro vezes por dia em que se deve abrir a janelinha da porta, saberei aproximadamente as horas. Para a noite, sabendo a hora do começo do primeiro turno da guarda e a duração dele, terei uma boa medida de tempo: primeiro turno, segundo, terceiro, etc.
Um, dois, três, quatro, cinco… Automaticamente, continuo nessa caminhada interminável e, com a ajuda do cansaço, consigo facilmente sair do presente e mergulhar no passado. Por contraste com a escuridão da cela, com certeza, sinto-me em pleno sol, sentado na praia da minha tribo. O barco em que Lali está pescando oscila a 200 metros de mim, nesse mar verde-opala, incomparável. Mexo na areia com os pés. Zoraima me traz um peixe grande assado na brasa, enrolado carinhosamente numa folha de bananeira, para conservar o calor. Como com a mão, naturalmente; e ela, sentada de pernas cruzadas diante de mim, me observa. Fica feliz de ver como grandes pedaços vão sendo facilmente suprimidos do peixe e lê no meu rosto a satisfação de saborear uma comida tão deliciosa.