A qualquer ilha que chegues, portanto, leva desde já a convicção de que não podes ter compromisso algum com essa raça. Há uma barricada bem definida e cada um está de um lado dela. De um lado, está a prepotência, a autoridade pedante e desalmada, o sadismo de reações intuitivas e automáticas; do outro, estou eu com os homens da minha espécie, que certamente cometeram delitos graves, mas nos quais o sofrimento conseguiu criar qualidades incomparáveis: a piedade, a bondade, o espírito de sacrifício, a nobreza, a coragem.
Com toda a sinceridade, prefiro ser um condenado a ser um desses carcereiros.
Faltam só vinte dias. Sinto-me realmente muito fraco. Observei que a minha bolota de pão é sempre das menores. Quem pode ser tão baixo a ponto de querer me prejudicar até na seleção das bolotas de pão? Há vários dias, minha sopa é pura água quente e o pedaço de carne é sempre um osso com pouquíssima carne ou um resto de pele. Tenho medo de ficar doente. Isso está ficando uma obsessão para mim. Estou tão fraco, que, acordado, não me esforço para sonhar coisa alguma. Essa profunda lassidão e uma depressão grave me inquietam. Procuro reagir, mas é com dificuldade que consigo passar as 24 horas de cada dia. Arranham minha porta. Rapidamente recolho um bilhete fosforescente de Dega e Galgani. Leio: “Manda uma palavra. Muito preocupados com teu estado de saúde. Mais dezenove dias. Coragem. Louis – Ignace”.
Há um pedacinho de papel branco e outro de lápis preto. Escrevo: “Agüento a parada. Estou muito fraco. Obrigado. Papi”.
Quando a vassoura passa novamente e me arranha a porta, mando o bilhete. A palavra recebida foi mais importante para mim do que quaisquer cigarros ou coquinhos. Essa maravilhosa manifestação de amizade firme é o estímulo de que eu precisava. Lá fora sabem como eu estou e, se adoecer, o médico será certamente pressionado por meus amigos para me tratar direito. Eles têm razão: mais dezenove dias e chegarei ao fim dessa corrida exaustiva contra a morte e contra a loucura. Não ficarei doente. Cabe-me fazer o mínimo possível de movimentos para só gastar as calorias indispensáveis. Vou suprimir as duas horas da caminhada matinal e as outras duas da caminhada do meio-dia. É o único modo de agüentar. À noite, passo doze horas deitado; de dia, passo deitado as outras doze, ou então sentado sem me mexer, no banco de pedra. De vez em quando, me levanto e faço algumas flexões e movimentos de braço; em seguida, torno a sentar-me. Assim passo mais dez dias.
Estou passeando pelas ruas de Trinidad, embalado pelo som dos violões de uma corda só que acompanham as canções tristes dos javaneses, quando um grito horrível, inumano, me chama de volta à realidade. É um grito que vem de uma cela atrás da minha, ou então muito próxima. Escuto:
– Desce aqui no meu cubículo, canalha! Não está cansado de ficar me olhando aí de cima? Assim você está perdendo a metade do espetáculo, porque a falta de luz deste buraco não te deixa ver direito…
– Cale a boca ou você vai ser severamente punido – diz o guarda.
– Ah, não me faça rir, seu imbecil! Que castigo pode ser pior do que esse silêncio? Castigue o quanto quiser! Pode me bater, se é do seu agrado, carrasco idiota, mas nada pode ser pior do que esse silêncio em que vocês querem me obrigar a viver! Não, não quero mais ficar calado, quero falar. Há três anos que já devia ter lhe dito: você é um merda, uma pústula! Minha fraqueza foi a de ter esperado 36 meses para lhe dizer o nojo que eu tenho de você, com medo de ser punido. Mas você e todos esses seus companheiros não passam de bonecos podres de merda!
Pouco depois, a porta da cela dele se abre e ouço:
– Não, assim não! Veste ao contrário, que é muito mais eficiente!
E o coitado do prisioneiro urra:
– Podem vestir a camisa de força como quiserem, seus merdas! Podem vestir ao contrário, podem me apertar os laços, podem me machucar com os joelhos. Isso não vai me impedir de dizer que a sua mãe era uma puta barata e que por isso mesmo você só podia ser um saco de merda!
Devem ter colocado uma mordaça nele, pois agora não ouço mais nada. A porta se fecha de novo. Essa cena deve ter emocionado o jovem guarda, porque, após alguns minutos, ele pára diante da minha cela e diz:
– Ele deve ter enlouquecido.
– Você acha? Mas o que ele falou é muito sensato.
O guarda fica boquiaberto e, ao prosseguir sua caminhada, resmunga:
– Bem, vai acabar imitando o outro.
Esse incidente me tirou da ilha, dos violões, do meio dos hindus de Port-of-Spain, para me trazer de volta à triste realidade da reclusão.
Tenho ainda dez dias, isto é, 240 horas para sofrer.
A tática de não me mexer dá bons resultados, talvez porque os dias sejam tranqüilos, talvez por causa do bilhete dos meus amigos. Creio, contudo, que me sinto mais forte em virtude de uma comparação. Faltam 240 horas para eu me libertar dessa reclusão; estou fraco, mas meu cérebro está intato, minha energia requer apenas um pouco mais de força física para voltar a funcionar com perfeição. No entanto, aqui atrás, a 2 metros, do outro lado da parede, há um prisioneiro que entra na primeira fase da loucura, talvez pela pior porta, que é a da violência. Não vai sobreviver por muito tempo. Sua revolta permitirá que lhe apliquem tratamentos estudados com o maior rigor para matá-lo o mais cientificamente possível. Consigo sentir-me mais forte porque o outro foi derrotado. A sensação faz com que eu me pergunte se não serei um daqueles egoístas que, no inverno, bem agasalhados e bem calçados, vêem passar a massa dos trabalhadores enregelados, mal vestidos, com as mãos azuladas pelo frio da manhã, e, olhando a multidão que corre para pegar o ônibus ou o metrô, ainda usufruem com maior gosto a comodidade e se sentem melhor do que antes. Tudo na vida é, com freqüência, feito de comparações. De fato, estou condenado a dez anos mas Papillon está condenado à prisão perpétua. De fato, estou condenado à prisão perpétua, mas tenho apenas 28 anos, ao passo que ele tem cinqüenta.
Bom, estou chegando ao fim da reclusão e, em menos de seis meses, espero que a saúde, o moral e a energia, em todos os aspectos, me deixem em boa situação para uma fuga espetacular. Falou-se muito da primeira. A segunda há de ficar gravada nas pedras da cadeia. Não tenho dúvida. Antes de seis meses, estou seguro de partir.
Essa é a última noite que passo na reclusão. Há dezessete mil quinhentas e oito horas entrei na cela 234. Uma vez me abriram a porta para me conduzir diante do comandante, a fim de que ele me punisse. Alguns segundos por dia, troquei alguns monossílabos com meu vizinho. Afora isso, me falaram quatro vezes. Uma para me dizer que, ao ouvir o apito, eu devia baixar a cama embutida; foi no primeiro dia. Outra vez, foi o médico: “Vire-se, tussa”. Depois, uma conversa mais longa e mais movimentada com o comandante. Por fim, outro dia, quatro palavras trocadas com o guarda que se emocionara diante do preso enlouquecido. Não é uma diversão excessiva! Durmo tranqüilamente, pensando numa única coisa: amanhã, essa porta vai se abrir definitivamente. Amanhã verei o sol e, se me mandarem para Royale, respirarei o ar marinho. Amanha estarei livre. Começo a dar gargalhadas. Como, livre? Amanhã recomeçarás a tua pena de trabalhos forçados, a tua prisão perpétua. É isso que consideras ser livre? Sei muito bem, mas e uma vida que não se compara àquela que acabei de suportar aqui. Como encontrarei Clousiot e Maturette?
Às 6 horas me dão o café e o pão. Tenho vontade de dizer: “Vocês estão enganados, hoje estou de saída”. Logo me recordo que sou “amnésico” e que, se me desmascarar ante o comandante, ele pode me dar um castigo adicional de trinta dias. De qualquer modo, pela lei, devo sair hoje, 26 de junho de 1936, da reclusão disciplinar de Saint-Joseph. Dentro de quatro meses estarei completando trinta anos.
Oito horas. Comi toda a minha bolota de pão. No caminho certamente me darão de comer. Abre-se a porta. Chegam o subcomandante e dois guardas.