Agora vejo sempre Sylvain e ele também me vê muito bem. Ele desaparece muito raramente, porque as ondas são pouco profundas. Tirou a camisa e está de peito nu. Sylvain me faz uns sinais. Está mais de 300 metros à minha frente, mas mais para o largo. Parece que está remando com as mãos, pela leve espuma em volta dele. Parece que quer segurar a jangada, para que eu chegue perto dele. Deito em cima dos sacos, mergulhando os braços na água, e remo. Se ele brecar e eu empurrar, será possível diminuir a distância entre nós?
Escolhi bem meu cúmplice nessa evasão, está à altura, cem por cento.
Paro de remar com as mãos. Sinto-me cansado. Preciso guardar minhas forças. Vou comer e tentar virar a jangada. A sacola da comida está embaixo e também a garrafa de couro com a água doce. Estou com sede e com fome. Meus lábios já estão partidos e queimam. A melhor maneira de virar os sacos é pendurar-me neles, na frente da onda, e depois empurrar com os pés na hora em que estão no alto da onda.
Depois de cinco tentativas, tenho a sorte de virar a jangada de uma vez só. Estou esgotado, pelo esforço que acabo de fazer, e subo com dificuldade nos sacos.
O sol está alto no horizonte e em pouco tempo vai desaparecer. É perto de 6 horas. Esperemos que a noite não seja muito agitada, porque vejo que são as longas imersões que me tiram as forças.
Bebo na bolsa de couro de Santori um bom gole de água, depois de comer dois punhados de polpa de coco. Satisfeito, as mãos secas Pelo vento, tiro um cigarro e fumo, deliciado. Antes que escureça, Sylvain agita sua toalha e eu a minha, em sinal de boa noite. Está sempre longe de mim. Estou sentado, com as pernas esticadas. Torço o mais possível minha malha de lã e a visto. Estas malhas, mesmo molhadas, esquentam; e, desaparecido o sol, começo logo a sentir frio.
O vento refresca. Somente as nuvens a oeste estão banhadas de luz rosa no horizonte. Todo o resto, agora, está mergulhado na penumbra do crepúsculo, que se acentua de minuto em minuto. A leste, de onde vem o vento, nenhuma nuvem. Portanto, não há perigo de chuva para a noite.
Não penso absolutamente em nada. Não me pergunto se é bom eu me segurar, não me molhar inutilmente, nem me pergunto se seria preferível, caso o cansaço me vença, amarrar-me aos sacos, ou se isso é muito perigoso depois da experiência que eu tive. Então percebo que eu me sentia preso nos movimentos porque a corrente era muito curta, uma extremidade ficava inutilizada, enrolada nas cordas e nos arames do saco. Esta ponta é facilmente recuperável. Vou ter, então, os movimentos mais livres. Arrumo a corrente e prendo-a de novo na cintura. A porca cheia de graxa funciona sem dificuldade. Não preciso apertá-la demais, como da primeira vez. Assim, me sinto mais tranqüilo, porque tenho um medo louco de pegar no sono e perder a jangada.
É, o vento aumentou e as ondas também. A jangada funciona otimamente, mas com as diferenças de nível cada vez mais acentuadas.
É noite completa. O céu está cravejado de milhões de estrelas e o Cruzeiro do Sul brilha mais que todas as outras,
Não vejo meu companheiro. Esta noite que começa é muito importante, porque, se a sorte permitir que o vento sopre durante toda a noite com a mesma força, vou andar bastante até amanhã de manhã.
Mais a noite avança, mais forte sopra o vento. A lua sai lentamente do mar, está de um vermelho pardacento e, quando, enfim livre, se apresenta enorme, inteira, distingo claramente suas manchas negras, que lhe dão o aspecto de um rosto.
Já são mais de 10 horas da noite. A noite fica cada vez mais clara. À medida que a luz se levanta, o clarão lunar fica mais intenso. As ondas ficam platinadas e sua estranha reverberação queima meus olhos. Não é possível deixar de olhar esses reflexos prateados, mas realmente machucam e queimam meus olhos, que já estão irritados pelo sol e a água salgada.
Por mais que eu mesmo ache que estou exagerando, não tenho vontade de resistir e fumo três cigarros seguidos.
Nada de anormal com a jangada, que, num mar fortemente agitado, sobe e desce sem problemas. Não posso ficar por muito tempo com as pernas esticadas sobre o saco de cocos, porque a posição sentada me dá logo cãibras horríveis.
Estou permanentemente molhado até a cintura. O peito está quase seco, o vento secou a malha, as ondas não me molham acima da cintura. Meus olhos ardem cada vez mais. Fecho-os. De vez em quando, pego no sono. “Você não pode dormir.” Fácil dizer, mas não agüento mais. Merda! Luto contra estes entorpecimentos. É, cada vez que retomo o senso da realidade, sinto uma dor aguda no cérebro. Tiro o isqueiro. De vez em quando me queimo, encostando a chama no braço direito ou no pescoço.
Sinto uma angústia horrível que procuro afastar com toda a minha energia. Será que vou dormir? E, se cair na água, o frio vai me acordar? Fiz bem de me prender de novo com a corrente. Não posso perder esses dois sacos, eles são a minha vida. Vai ser mesmo o diabo se, ao cair na água, eu não acordar mais.
Depois de alguns minutos estou de novo todo molhado. Uma onda rebelde, que com certeza não queria seguir na direção normal das outras, veio chocar em mim do lado direito. Não só ela me molhou mas ainda me jogou de atravessado, e duas outras ondas normais me cobriram completamente, da cabeça aos pés.
A segunda noite está bem adiantada. Que horas poderão ser? Pela posição da lua, que começa a descer a oeste, devem ser mais ou menos 2 ou 3 horas da manhã. Há cinco marés, trinta horas, que estamos na água. Ficar molhado até os ossos me serve para alguma coisa: o frio me acordou completamente. Estou tiritando, mas conservo os olhos arregalados sem esforço. As pernas ficam endurecidas e resolvo dobrá-las, colocando os pés debaixo das nádegas. Levantando-me com as duas mãos, uma de cada vez, consigo sentar-me em cima das pernas. Os dedos dos pés estão gelados, quem sabe se agora vão esquentar.
Fico bastante tempo assim, sentado com as pernas cruzadas. Mudar de posição me fez bem. Tento ver Sylvain, pois a lua ilumina bastante o mar. Só que ela já desceu e, com ela de frente, não consigo distinguir direito. Não, não enxergo nada. Ele não tinha nada para se amarrar aos sacos, será que está ainda em cima deles? Procuro por ele desesperadamente, é inútil. O vento está forte, mas é regular, não muda de repente, e isto é muito importante. Acostumei-me com seu ritmo e meu corpo forma um só volume com os sacos.
De tanto procurar em volta, só tenho uma idéia fixa na cabeça: ver meu companheiro. Seco os dedos no vento e assobio com todas as minhas forças, com os dedos na boca, Escuto. Ninguém responde. Será que Sylvain sabe assobiar com os dedos? Não sei. Devia perguntar para ele antes de partir. Podíamos até fazer dois apitos. Reprovo-me por não ter pensado nisso. Depois coloco as duas mãos diante da boca e grito: “Hu-Hu!” Só o barulho do vento me responde e o chuá-chuá das ondas.
Então, sem me importar mais, levanto-me e, de pé em cima dos sacos, levantando a corrente com a mão esquerda, fico me equilibrando enquanto cinco ondas me carregam na sua crista. Quando chego lá em cima fico completamente de pé e, para descer e tornar a subir, fico agachado. Nada à direita, nada à esquerda, nada pela frente. Será que ele está atrás de mim? Não tenho coragem de ficar de pé e olhar para trás. A única coisa que tenho a impressão de ter visto, sem nenhuma dúvida, é uma linha preta marcada nesta noite de lua. Com certeza é a floresta.
De dia vou ver as árvores, isso me faz bem. “De dia, você vai ver a floresta, Papi! Se Deus quiser, você vai ver também seu companheiro!”
Estiquei de novo as pernas depois de ter esfregado os dedos dos pés. Depois resolvo secar as mãos e fumar um cigarro. Fumo dois. Que horas serão? A lua está bastante baixa. Não lembro mais em quanto tempo antes do nascer do sol ela desapareceu na noite passada. Tento me lembrar com os olhos fechados, recordando as imagens da primeira noite. Inútil. Ah, é! De repente vejo claramente o sol levantar-se a leste e, ao mesmo tempo, uma ponta da lua ainda visível na linha do horizonte, a oeste. Então, devem ser quase 5 horas. A lua é bastante vagarosa para cair no mar. O Cruzeiro do Sul desapareceu há muito tempo, a Ursa Maior e a Ursa Menor também. Somente a estrela Polar brilha mais que todas as outras. Depois que o Cruzeiro do Sul sumiu, a Polar é a rainha do céu.