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Depois de dar de comer a mais de duzentos porcos, fiquei andando pela ilha o dia todo, acompanhado por Chang, que a conhece a fundo. Um velho, com uma longa barba branca, cruzou conosco na picada que dá volta à ilha pela praia. É um jornalista de Nova Caledônia que, durante a guerra de 1914, escrevia contra a França, a favor da Alemanha. Vi também o porco que mandou fuzilar Edith Cavell, a enfermeira inglesa ou belga que salvou os aviadores ingleses em 1917. Este repugnante personagem, grande e gordo, tinha um pau na mão e sovava um peixe enorme, de mais de 1 metro e 50 de comprimento e grosso como a minha coxa.

O enfermeiro também mora numa dessas casinhas que deveriam ser somente dos presos políticos.

O Dr. Léger é uma ótima pessoa. Sujo e atarracado, dele só o rosto é limpo, um rosto emoldurado de cabelos grisalhos e muito compridos sobre o pescoço e as têmporas. Suas mãos estão avermelhadas de feridas mal cicatrizadas, provavelmente provocadas pelo atrito com as asperezas das rochas do mar.

– Se precisar de alguma coisa, venha aqui, que eu arranjo para você. Venha só se estiver doente. Não gosto de que venham me procurar e menos ainda de me procurar para bater papo comigo. Vendo ovos e de vez em quando um frango ou uma galinha. Se matar um leitão escondido, traga um pernil e eu lhe dou um frango e seis ovos. Já que você está aqui, leve este vidro com 120 cápsulas de quinino. Você veio aqui para fugir, se por milagre você conseguir, vai precisar disso na mata.

Pesco quantidades astronômicas de salmonetes de manhã e de noite. Mando de 3 a 4 quilos todos os dias para a cozinha dos guardas. Santori está radiante, nunca ganhou tanta variedade de peixe e de lagostim. Às vezes, mergulhando na maré baixa, pego trezentos lagostins.

O médico Germain Guibert veio ontem à Ilha do Diabo. Como o mar estava bom, veio o comandante de Royale e a Sra. Guibert. Esta mulher admirável é a primeira a pôr os pés nesta ilha. De acordo com o comandante, jamais um civil botou os pés aqui. Pude falar mais de uma hora com ela. Foi comigo até o banco onde Dreyfus sentava olhando para o mar, em direção à França que o rejeitara.

– Se esta pedra polida pudesse contar os pensamentos de Dreyfus… – diz, acariciando a pedra. – Papillon, esta é seguramente a última vez que nós nos vemos, porque todos dizem que daqui a pouco você vai tentar nova fuga. Vou rezar para você conseguir. E eu lhe peço que, antes de partir, fique um minuto nesse banco que eu acariciei e peço que você o acaricie também ao se despedir dele.

O comandante me deu a autorização para mandar pelo cabo, sempre que eu quiser, lagostins e peixe para o doutor. Santori concordou.

– Adeus, doutor, adeus senhora.

Despeço-me deles o mais naturalmente possível antes que a chalupa se afaste do pontão. Os olhos da Sra. Guibert se fixam em mim, imensos, francos, como para dizer: “Lembre-se sempre de nós, e nós não esqueceremos de você nunca mais”.

O banco de Dreyfus fica bem no. alto da ponta norte da ilha. Domina o mar a mais de 40 metros.

Não fui pescar hoje. Num viveiro natural, tenho mais de 100 quilos de salmonetes e, numa pipa de ferro presa por uma corrente, mais de quinhentos lagostins. Assim, não preciso me ocupar com a pesca. Tenho o suficiente para mandar para o médico, para Santori, para o chinês e para mim.

Estamos em 1941, há onze anos que estou na cadeia. Tenho 35 anos. Passei os dez anos mais bonitos da minha vida na cela ou na masmorra. Tive apenas sete meses de liberdade completa com a minha tribo de índios. Os filhos que fui obrigado a ter com minhas duas mulheres índias estão agora com oito anos. Que horror! Como o tempo passou depressa! Mas, olhando para trás, contemplo estas horas, estes minutos, e recordo como custaram a passar quando os’ suportava, como cada um deles ficou integrado nesse calvário.

Trinta e cinco anos! Onde estão Montmartre, a Praça Blanche, Pigalle, o salão de baile do Petit Jardin, o bulevar de Clichy? Onde está Nenette, com seu rosto de madona, verdadeiro camafeu, Nénette que, com seus grandes olhos negros, desesperada, gritou no tribunal: “Não se preocupe, meu querido, estarei com você até lá”? Onde está Raymond Hubert com seu “Seremos absolvidos”? Onde estão os doze viados do júri? E os guardas? e o promotor? Que é feito de meu pai e das famílias que minhas irmãs constituíram sob o jugo alemão?

Quantas fugas! Vejamos, quantas?

A primeira, quando fugi do hospital, depois de derrubar os guardas a cacetadas.

A segunda na Colômbia, em Rio Hacha, A mais bonita. Lá, eu tinha sido completamente vitorioso. Por que fui deixar minha tribo? Um estremecimento de desejo percorre meu corpo. Tenho a impressão de sentir ainda dentro de mim as sensações dos atos do amor com as duas irmãs índias.

Depois a terceira, a quarta, a quinta e a sexta em Barranquilla. Quanto azar nessas fugas! O golpe da missa, tão desgraçadamente malogrado! A dinamite que explodiu! Clousiot, que ficou pendurado pelas calças! E a demora do narcótico!

A sétima, em Royale, onde aquele puto do Bébert Celier me denunciou. Aquela teria dado certo, claro, se não fosse por ele. Se ele tivesse calado a boca, eu estaria livre com meu pobre amigo Carbonieri.

A oitava, a última, a do asilo. Um erro, um grande erro da minha parte, ter deixado o italiano escolher o lugar de entrar no mar. Duzentos metros mais para baixo, perto do matadouro, teríamos certamente mais facilidade para soltar a jangada.

Este banco – onde Dreyfus, condenado inocente, encontrou a coragem de continuar a viver apesar de tudo – deve servir-me para alguma coisa. Nunca me darei por vencido. Tentarei outra fuga.

Sim, esta pedra lisa, polida, em cima desse precipício, onde as ondas batem enraivecidas sem parar, será para mim um apoio e um exemplo. Dreyfus nunca se deixou abater e sempre, até o fim, lutou pela sua reabilitação. É verdade que ele teve Émile Zola com seu famoso Eu Acuso para defendê-lo. Todavia, não fosse um homem de muita fibra, diante de tanta injustiça teria se jogado com certeza no abismo, deste mesmo banco. Ele agüentou o golpe. Não devo ser menos forte do que ele e preciso largar de lado essa idéia de tentar uma nova fuga com a alternativa: vencer ou morrer. Preciso esquecer a palavra morrer, para pensar somente em vencer e ser livre.

Nas longas horas que passo sentado no banco de Dreyfus, meus pensamentos vagueiam, sonham com o passado e constroem um futuro cor-de-rosa. Meus olhos ficam freqüentemente ofuscados por tanta luz, pelos reflexos da crista das ondas. De tanto olhar sem realmente enxergar este mar, conheço todos os caprichos possíveis e imagináveis das ondas que acompanham o vento. O mar, inexoravelmente, sem jamais se cansar, ataca os rochedos mais avançados da ilha. Ele os escava, corrói as rochas, parece dizer à Ilha do Diabo: “Vá embora, você precisa desaparecer, você me estorva quando eu me lanço sobre o continente, você barra o meu caminho. É por isso que cada dia, sem parar, eu arranco um pedacinho de você”. Quando há tempestade, o mar se entrega à loucura e não apenas raspa, arrancando o que consegue destruir, mas ainda procura penetrar em todos os cantos para, pouco a pouco, minar por baixo esses gigantes de pedra, que parecem dizer: “Por aqui não se passa”.

Então descubro uma coisa importantíssima. Justo embaixo do banco de Dreyfus, diante de imensas rochas em forma de ferradura, as ondas atacam, arrebentam e se retiram com violência. As toneladas de água não podem se dispersar, porque ficam presas entre esses dois penedos que formam uma ferradura de cerca de 5 ou 6 metros de largura. À frente fica o penhasco, portanto a água das ondas não tem outra saída senão voltar para o mar.

Isso é muito importante porque, se na hora em que a onda bate e volta, eu me jogar do rochedo com um saco de cocos, mergulhando diretamente dentro dela, sem sombra de dúvida ela me arrastará consigo ao se retirar.