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Seus olhos têm um olhar tão franco, que não duvido de sua retidão. E, se não ouvi ninguém falar bem dele, também não ouvi falar mal; portanto, deve ser um bom rapaz.

Pobre Salvidia! Deve ter havido um barulhão quando perceberam que ele sumiu. Encontraram os pedaços dos tonéis devolvidos pelo mar. Têm certeza que ele foi devorado pelos tubarões. O médico fez um barulho dos diabos por causa do óleo jogado fora. Diz que, com a guerra, não é fácil de se conseguir óleo.

– Que me aconselha a fazer?

– Vou fazer com que nomeiem você para o grupo que sai do asilo todos os dias para ir buscar víveres no hospital. Será um passeio. Comece a se comportar bem. E, em dez conversas, mantenha oito dentro do bom senso. Nunca se deve sarar muito depressa.

– Obrigado. Como é seu nome?

– Dupont.

– Obrigado. Não vou esquecer seus bons conselhos.

Faz quase um mês que tentei a fuga. Seis dias depois encontraram o corpo do meu companheiro flutuando. Por um acaso inexplicável, os tubarões não o comeram. Mas outros peixes devoraram, parece, suas entranhas e uma parte da perna, segundo me conta Dupont. Seu crânio estava quebrado. Devido ao adiantado grau de decomposição, não fizeram autópsia. Pergunto a Dupont se há possibilidade de eu mandar uma carta. Seria preciso fazê-la chegar às mãos de Galgani, para que a enfie dentro do saco do correio na hora de selá-lo.

Escrevo para a mãe de Romeo Salvidia, na Itália:

“Minha senhora, seu filho morreu sem ferros nos pés. Morreu no mar, corajosamente. Morreu livre, lutando valentemente para conquistar sua liberdade. Prometemo-nos mutuamente escrever às nossas famílias se alguma desgraça acontecesse a um de nós. Cumpro este doloroso dever, beijando-lhe filialmente as mãos.

Um amigo de seu filho,

Papillon”.

Depois de cumprido o meu dever, decido não pensar mais nesse pesadelo. É a vida. Resta sair do asilo, chegar à Ilha do Diabo, custe o que custar, e tentar outra fuga.

O guarda nomeou-me jardineiro de seu jardim. Há dois meses que me comporto bem e fiz com que ele me apreciasse de tal maneira, que o viado do guarda não quer me largar mais. O cara de Auvergne disse que, em sua última visita, o médico queria me fazer sair do asilo para me por no barracão em “saída de experiência”. O guarda se opôs, dizendo que seu jardim jamais estivera tão bem cuidado.

Então, hoje de manhã, arranquei todos os morangueiros e joguei-os no lixo. No lugar de cada morangueiro, plantei uma pequena cruz. Tantos morangueiros, tantas cruzes. Contar o escândalo não vale a pena. O gordo e pesado guarda-chefe quase estourou, tão grande foi sua indignação. Ele babava e bufava, querendo falar, mas os sons não queriam sair. Finalmente, sentado num carrinho de mão, ele chorou lágrimas verdadeiras. Fui um tanto pesado, mas o que fazer?

O médico não levou a coisa para o lado trágico. Esse doente, insiste, deve ser posto em “saída de experiência” e ir para o barracão, a fim de se readaptar à vida normal. Foi de estar sozinho no jardim que lhe veio essa idéia bizarra.

– Diga-me, Papillon, por que arrancou os morangueiros e pôs cruzes no lugar?

– Não posso explicar essa ação, doutor, e peço desculpas ao vigilante. Ele gostava tanto dos morangueiros, que estou realmente desolado. Vou pedir ao bom Deus que lhe dê outros.

Eis-me no barracão. Reencontro meus amigos. O lugar de Carbonieri está vazio, ponho minha rede ao lado desse espaço vazio, como se Matthieu continuasse lá.

O doutor me fez bordar em meu blusão: “Em tratamento especial”. Ninguém, a não ser o médico, pode me dar ordens. Ele me ordenou que catasse folhas, das 8 às 10 horas da manhã, diante do hospital. Bebi o café e fumei alguns cigarros em companhia do médico, em uma poltrona, diante da casa. Sua mulher está sentada conosco e o médico tenta fazer com que eu fale de meu passado, ajudado pela sua mulher.

– E então, Papillon, e depois? Que foi que lhe aconteceu depois que deixou os índios pescadores de pérolas?…

Passo todas as tardes com essas duas pessoas admiráveis.

– Venha me visitar todos os dias, Papillon – disse-me a mulher do doutor. – Primeiro, porque quero vê-lo; depois, para ouvir as histórias que lhe aconteceram.

Todo dia, passo algumas horas com o médico e sua mulher, às vezes só com a mulher dele. Obrigando-me a contar minha vida passada, eles estão persuadidos de que isso contribui para me equilibrar definitivamente. Decidi pedir ao médico que me mande à Ilha do Diabo.

Está feito: devo partir amanhã. Esse doutor e sua mulher sabem por que vou à Ilha do Diabo. Foram tão bons comigo, que não quis enganá-los:

– Doutor, não agüento mais esta prisão, faça com que me mandem para a Ilha do Diabo, faça com que eu escape ou estoure, mas que isto acabe!

– Eu o compreendo, Papillon. Este sistema de repressão me desgosta, esta administração é podre. Então, adeus e boa sorte!

10 A ILHA DO DIABO

O BANCO DE DREYFUS

É a menor das Ilhas da Salvação. Aquela que fica mais ao norte, também, e a mais batida pelo vento e pelas ondas. Depois de uma baixada estreita que se estende ao longo do mar por todo o litoral, eleva-se rapidamente até um planalto onde estão instalados o posto de guarda dos vigilantes e uma única enfermaria para os presos, uns dez mais ou menos. Para a Ilha do Diabo, oficialmente, não são mandados os condenados comuns, mas apenas os presos e deportados políticos.

Vivem cada um numa casinha coberta de folhas-de-flandres. Às segundas-feiras recebem os víveres crus para a semana e todos os dias recebem um pão. São uns trinta. O enfermeiro é o Dr. Léger, que envenenou toda a família em Lyon ou aí por perto. Os políticos não se dão com os comuns e às vezes escrevem para Caiena, queixando-se de um ou outro preso comum da ilha. Então, este é removido e levado de volta a Royale.

Um cabo liga Royale à Ilha do Diabo, porque muito freqüentemente o mar está agitado demais para que o barco de Royale possa aportar numa espécie de pontão de cimento.

O chefe dos guardas do presídio (são três) chama-se Santori. É um grandalhão sujo e muitas vezes fica com uma barba de oito dias.

– Papillon, espero que você se porte bem na Ilha do Diabo. Não me encha o saco e eu vou deixar você sossegado. Suba para o presídio, vejo você lá.

Na enfermaria encontro seis forçados: dois chineses, dois negros, um sujeito de Bordéus e um de Lille. Um dos chineses me conhece bem, estava junto comigo em Saint-Laurent, preso preventivamente por assassinato. É um indochinês, um sobrevivente da revolta do presídio de Poulo Condor, na Indochina.

Pirata de profissão, atacava os barcos e às vezes assassinava toda a tripulação com a família. Excessivamente perigoso, tem no entanto uma maneira de viver em comum com os outros presos que capta a confiança e a simpatia.

– Como vai, Papillon?

– Bem. E você, Chang?

– Vai indo. Aqui a gente está bem. Você comer comigo. Você dormir lá, perto de mim. Eu cozinhar duas vezes por dia. Você pegar peixe. Aqui bastante peixe.

Santori chega:

– Ah, já se instalou? Amanhã de manhã, você vai com Chang dar de comer aos porcos. Ele leva os cocos e você parte os cocos com um machado. Precisa separar os cocos moles para os leitões que não têm dentes. À tarde, às 4 horas, a mesma coisa. Excetuadas estas duas horas, uma de manhã e outra de tarde, você está livre para fazer o que quiser na ilha. Cada pescador tem que levar 1 quilo de peixe para meu cozinheiro, ou de lagostim. Assim, todo mundo fica satisfeito. Está certo?

– Certo, Sr. Santori.

– Sei que você é um fujão inveterado, mas, como daqui a fuga é impossível, nem vou ligar. De noite, você fica trancado, mas eu sei que há alguns que fogem assim mesmo. Você podia ficar como guarda dos deportados políticos. Todos eles têm um facão de mato. Se você chegar perto das casas deles, vão pensar que você vai roubar um frango ou ovos. Eles podem até matar ou machucar você, porque eles enxergam você, e você não os vê.