– Olha aqui, Harding – diz Cheswick.

– Não, não, Cheswick. Não fique irritado com a verdade.

– Olha aqui; já houve ocasiões em que eu disse sobre a velha Ratched as mesmas coisas que McMurphy está dizendo.

– Sim, mas você as disse bem baixinho e engoliu todas depois. Você também é um coelho, não tente fugir à verdade. É por isso que não guardo raiva de você pelas perguntas que me fez hoje, durante a sessão. Você só estava desempenhando seu papel. Se você tivesse estado na berlinda, ou você, Billy, ou você, Fredrickson, eu os teria atacado com a mesma crueldade com que vocês me atacaram. Não nos devemos envergonhar do nosso comportamento; é a maneira como nós os animaizinhos fomos criados para nos comportarmos.

McMurphy vira-se na cadeira e olha para os outros Agudos de cima a baixo.

__ Não tenho tanta certeza de que não devam estar envergonhados. Pessoalmente, achei que foi um bocado escroto o jeito como eles se passaram para o lado dela, contra você. Por um momento ali, pensei que estivesse de volta a um campo de prisioneiros da China comunista…

– Ora, por Deus, McMurphy, escute só um momento – diz Cheswick.

McMurphy vira-se e escuta, mas Cheswick não continua. Cheswick nunca continua; ele é um desses que fazem um grande estardalhaço de que vão liderar um ataque, gritam ao ataque e sapateiam para cima e para baixo durante um minuto, dão dois passos à frente e desistem. McMurphy olha para ele justo onde ele se está desequilibrando outra vez, depois de um começo de aparência tão firme, e lhe diz:

– Um diabo parecido mesmo com um campo de prisioneiros dos chineses.

Harding ergue as mãos pedindo paz.

– Oh, não, não, isso não está certo. Você não nos deve condenar, amigo. Não. Na realidade…

Eu vejo aquela febre sorrateira tornar a surgir nos olhos de Harding; penso que vai começar a rir de novo, mas em vez disso tira o cigarro da boca e aponta com ele para McMurphy – na sua mão, o cigarro parece com um de seus dedos, magros e brancos, soltando fumaça na ponta.

– … você também, Sr. McMurphy, com todo o seu estardalhaço de vaqueiro e o seu falatório de teatro mambembe, você também, sob essa sua superfície calejada, deve ter provavelmente uma alma de coelho tão fofa e esfiapada quanto nós.

– É, é isso aí. Não passo de um coelho. Diga. O que é que faz de mim um coelho, Harding? Minhas tendências psicopáticas? Minhas tendências à briga, ou minha mania de trepação? Deve ser minha mania de trepar, não deve? Todo aquele "foda-se e obrigado, madame". É aquele "foda-se, tome lá", é isso que provavelmente faz de mim um coelho…

– Espere, temo que você tenha levantado uma questão que requer certa reflexão. Os coelhos são conhecidos por essa determinada característica, não são? Na realidade, são famosos pela capacidade de reprodução. Sim. Hum. Mas de qualquer jeito, a questão que você levantou indica simplesmente que você é um coelho saudável, em bom funcionamento e bem-ajustado, enquanto que a maioria de nós aqui não tem nem a capacidade sexual para passar no exame de coelhos ajustados. Fracassos, nós somos… criaturinhas fracas, raquíticas, frágeis, de uma racinha fraca. Coelhos sans foda; uma idéia patética.

– Espere um minuto, você fica torcendo o que eu digo…

– Não. Você estava certo. Lembra-se de que foi você quem chamou a nossa atenção para o ponto em que a enfermeira estava concentrando suas bicadas? Aquilo era verdade. Não há um homem aqui que não esteja com medo de estar perdendo ou que já não tenha perdido o seu aparelho de foder. Nós, as cômicas criaturinhas, não podemos nem ao menos alcançar a maturidade no mundo dos coelhos, isso é que mostra o quanto somos fracos e incapazes. Nós somos… os coelhos, poder-se-ia dizer, do mundo dos coelhos!

Ele novamente se inclina para a frente, e aquele seu riso entrecortado e convulso que eu tenho estado esperando começa a levantar-se da sua boca, as mãos se debatendo, o rosto em contração.

– Harding! Feche essa maldita boca!

É como um tapa. Harding se cala, cortado e paralisado, com a boca ainda aberta num esgar forçado, as mãos oscilando numa nuvem azul de fumaça. Fica imóvel assim durante um segundo; então seus olhos se estreitam em pequenas fendas traiçoeiras e ele os deixa deslizar até McMurphy, fala tão suavemente que tenho de empurrar a vassoura até bem junto da cadeira dele para ouvir o que diz.

– Amigo… você… pode ser um lobo.

– Que merda, não sou nenhum lobo, nem você é nenhum coelho. Porra, nunca ouvi tanta…

– Você tem rosnado bem de lobo.

Com um ruído sibilante McMurphy deixa escapar a respiração, vira-se de Harding para o resto dos Agudos, de pé em volta deles.

– Olhem aqui, todos vocês. Que diabo é que há com vocês? Vocês não são tão loucos assim, de pensar que são uma espécie de animal.

– Não – diz Cheswick pondo-se ao lado de McMurphy. – Não, por Deus, eu não. Não sou nenhum coelho.

– É isso aí, Cheswick. E o resto de vocês, vamos deixar isso pra lá. Olhem só pra vocês mesmos, convencendo-se, com papo furado, a sair correndo de pavor de uma droga de uma mulher de 50 anos. De qualquer maneira, o que é que ela pode fazer com vocês?

– Sim, o quê? – diz Cheswick e lança um olhar desafiante para os outros.

– Ela não pode mandar chicotear vocês. Não pode queimar vocês com ferros em brasa. Não pode amarrar vocês à roda * . Existem leis sobre esse tipo de coisa, hoje em dia; não estamos na Idade Média. Não há uma coisa no mundo que ela possa…

– Você v-v-viu o que ela p-pode fazer conosco! Na s-s-sessão hoje. – Vejo que Billy Bibbit deixara de ser coelho. Ele se inclina para McMurphy, tentando continuar, a boca molhada de cuspe e o rosto vermelho. Então ele se vira e se afasta. – Ah, n-n-n-não adianta. Eu só devia me m-m-matar.

McMurphy grita para as suas costas.

– Hoje? O que foi que eu vi hoje na sessão? Porra, que diabo, tudo que eu vi hoje foi ela fazer um par de perguntas e, por falar nisso, perguntas agradáveis e simples. Perguntas não quebram ossos, não são varas e pedras.

Billy torna a se virar.

– Mas a ma-ma-maneira como ela pergunta…

– Você não é obrigado a responder, é?

– Se você n – não responde ela apenas sorri e t – t – toma nota naquele livrinho dela e então ela… oh… inferno!

Scanlon aproxima-se e fica ao lado de Billy.

– Se você não responder às perguntas dela, Mack, você as admite apenas por ter ficado em silêncio. É desse jeito que esses bandidos no governo nos apanham. É impossível escapar. A única coisa a fazer é explodir o treco inteiro, arrancar tudo da face da droga da Terra… explodir tudo.

– Bem, quando ela faz uma dessas, por que não pedem que se levante e vá para o inferno?

– Sim – diz Cheswick, sacudindo o punho. – Dizer a ela para se levantar e ir para o inferno.

– Então, o que, Mack? Ela apenas responderia direto com "por que é que o senhor parece estar tão a – borre – ci -do com esta pergunta em par – ti – cu – lar, paciente McMurphy?"

– E daí diz a ela pra ir pro inferno de novo. Digam a todos eles que vão para o inferno. Eles ainda não machucaram vocês.

Os Agudos se estão juntando mais em volta dele. Fredrickson responde dessa vez.

– O.K., você diz isso a ela e é posto na lista como Potencialmente Agressivo e mandado lá para cima, para a enfermaria dos Perturbados. Eu fiz isso. Três vezes. Aqueles pobres patetas lá de cima não saem da enfermaria nem para ir ao cinema sábado de tarde. Eles não têm nem uma TV.

– E, meu amigo, se continuar a demonstrar tendências tão hostis, tais como mandar as pessoas para o inferno, acaba sendo escalado para ir para a Sala de Choque, talvez até coisas piores, uma operação, uma…

– Merda, Harding, já disse que não entendo essa conversa.

– A Sala de Choque, Sr. McMurphy, é jargão utilizado para dizer aparelho do TE, Terapia de Eletrochoque. Um engenho do qual se poderia dizer que faz o trabalho dos comprimidos para dormir, de cadeira elétrica e da roda de tortura. É um procedimentozinho hábil, simples, rápido, quase indolor, visto que é tão rápido, mas a gente nunca quer repetir a dose. Nunca.

– Que é que essa coisa faz?

– Você é amarrado sobre uma mesa, ironicamente em forma de uma cruz, com uma coroa de fusos elétricos em lugar de espinhos. Você é tocado de cada lado da cabeça com fios. Zap! O correspondente a cinco centavos de eletricidade atravessa o cérebro e administram-lhe conjuntamente a terapia e uma punição pelo seu comportamento hostil de "vá para o inferno", além de ser posto fora das vistas de todo mundo de seis horas a três dias, dependendo do indivíduo. Mesmo quando você recobra a consciência, fica num estado de desorientação durante dias. Fica incapaz de pensar coerentemente. Não consegue lembrar-se das coisas. Uma certa repetição desses tratamentos poderia fazer um homem ficar igualzinho ao Sr. Ellis, que você vê ali encostado na parede. Um idiota sonâmbulo, molhador de calças aos 35 anos. Ou transformá-lo num organismo sem cérebro que come e elimina e berra "foda a mulher", como Ruckly. Ou olhe para o chefe Vassoura agarrado ao seu apelido aí a seu lado.

Harding aponta o cigarro para mim, tarde demais para eu recuar. Faço de conta que não vi. Continuo varrendo. Ele prossegue:

– Ouvi dizer que o chefe, há anos, recebeu mais de 200 tratamentos de choque, quando eles estavam realmente em voga. Imagine o que isso poderia fazer com uma mente que já estava meio doente. Olhe para ele: um limpador gigante. Aí está o seu Americano em Extinção, uma máquina de varrer de dois metros, com medo da própria sombra. É com isso, meu amigo, que podemos ser ameaçados.

McMurphy olha para mim por um instante, então torna a voltar-se para Harding.

– Cara, me diz uma coisa, como é que vocês concordam com isso? E essa merda toda de enfermaria democrática de que o médico estava me falando. Por que não fazem uma votação?

Harding sorri para ele e dá uma outra tragada no cigarro.

– Votar o que, meu amigo? Votar que a enfermeira não possa mais fazer perguntas nas sessões? Votar que ela não deverá mais nos olhar de uma certa maneira? Diga-me você, Sr. McMurphy, em que é que devemos votar?

– Diabo, pouco me importa. Votar em qualquer coisa. Vocês não vêem que precisam fazer alguma coisa para mostrar que ainda têm um pouco de coragem? Não vêem que não podem deixá-la assumir o controle por completo? Olhem para vocês mesmos: vocês dizem que o chefe tem medo da própria sombra, mas eu nunca vi na minha vida um bando que me parecesse tão apavorado quanto vocês.

* Aparelho de tortura muito utilizado pela Inquisição. (N. do T.)