O rosto e as mãos de Harding agora se estão movendo mais depressa que nunca, num filme de gestos, sorrisos, caretas e trejeitos em alta velocidade. Quanto mais ele tenta parar, mais rápido correm. Quando ele deixa as mãos e o rosto se moverem à vontade e não tenta impedi-los, fluem e gesticulam de um jeito que é realmente bonito de se ver, mas, quando ele se preocupa e tenta controlá-los, se transforma numa marionete saltitante na execução de uma dança frenética. Tudo se está mexendo cada vez mais depressa, e a voz dele apressa-se para acompanhar o ritmo.

– Ora veja bem, meu amigo, Sr. McMurphy, meu camaradão psicopata, a nossa Srta. Ratched é um verdadeiro anjo de misericórdia e o porquê simplesmente todo mundo sabe. Ela é dedicada e generosa, trabalhando, sem visar a agradecimentos, para o bem de todos, dia após dia, durante cinco longos dias por semana. É preciso ter coração para isso, meu amigo, coração. De fato, fui informado por fontes, não tenho permissão para revelar quais as minhas fontes, mas poderia dizer que Martini está em contato com as mesmas pessoas uma boa parte do tempo, de que ela ainda presta maiores serviços à humanidade durante os fins de semana, num trabalho generoso e voluntário pela cidade. Reúne, por caridade, alimentos enlatados, queijo para completar a dieta, sabão, ajudando com eles um jovem casal qualquer, que esteja atravessando dificuldades financeiras. – As mãos dele saltam no ar, moldando o quadro que está descrevendo. – Ah, olhem: Ali está ela, a nossa enfermeira. Sua batida suave na porta. A cesta com fitas. O jovem casal radiante a ponto de ter perdido a fala. O marido boquiaberto, a esposa chorando abertamente. Ela examina a casa deles. Promete-lhes enviar dinheiro para… pó para limpeza, sim. Coloca a cesta no meio do assoalho. E quando o nosso anjo vai embora, atirando beijos, sorrindo etereamente, está tão intoxicado com o doce leite da bondade humana, que sua ação gerou no interior do seu grande busto, que está fora de si de generosidade. Fo-ra de si, está ouvindo? Parando na porta, ela chama a jovem esposa tímida para um lado e lhe oferece 20 dólares do seu dinheiro: "Vá, pobre criança infeliz e mal-alimentada, vá e compre um vestido decente. Eu compreendo que seu marido não tem condições para isso, mas tome aqui, aceite e vá." E o casal estará endividado para sempre com a sua generosidade.

Ele fala cada vez mais depressa, os músculos saltando para fora no pescoço. Quando pára de falar, a enfermaria está em absoluto silêncio. Nada ouço além de um leve girar ritmado, que imagino seja o gravador escondido em algum lugar, captando tudo.

Harding ergue os olhos e, notando que todo mundo está olhando para ele, esforça-se para rir. Sai de sua boca um som parecido com o de um prego ao ser arrancado de um tabuão de pinho verde com um pé-de-cabra: Iii – iii – iii. Ele não consegue parar. Torce as mãos e aperta os olhos ante o som horrível daquele guinchado. Mas não consegue parar. Fica mais alto e mais alto ainda, até que finalmente, com uma tomada de fôlego, ele deixa o rosto cair sobre as mãos que esperam.

– Oh, a cadela, a cadela, a cadela – murmura por entre os dentes.

McMurphy acende outro cigarro e o oferece a ele; Harding aceita sem dizer uma palavra. McMurphy ainda está observando o rosto de Harding, ali, na sua frente, com uma espécie de perplexidade, olhando para ele como se fosse o primeiro rosto humano em que jamais tivesse posto os olhos. Observa enquanto as contrações de Harding vão diminuindo e o rosto se levanta das mãos.

– Você está certo – diz Harding – a respeito de tudo. – Ele olha para os outros pacientes que o observam. – Ninguém ousou nunca abrir o jogo e dizê-lo antes, mas não há um único homem entre nós que não pense isso, que não sinta da mesma maneira que você, com relação a ela e a tudo mais, que não sinta isso em algum lugar, bem lá no fundo, na sua alma assustada.

McMurphy franze o cenho e pergunta:

– E o que é que há com aquele peido de médico? Ele pode até ser meio lento da cabeça, mas não tanto a ponto de não ser capaz de ver como ela assumiu o comando e o que está fazendo.

Harding dá uma longa tragada no cigarro e deixa a fumaça ir saindo à medida que vai fumando.

– O Doutor Spivey… é exatamente como todos nós, McMurphy, absolutamente consciente de sua incapacidade. É um coelhinho desesperado, assustado e inútil, totalmente incapaz de dirigir esta enfermaria sem a ajuda da nossa Srta. Ratched, e ele sabe disso. E, pior, ela sabe que ele sabe disso, e lhe recorda em todas as oportunidades que tem. Toda vez que ela descobre que ele deu um pequeno escorregão em seus deveres ou em, digamos, nos registros, você pode muito bem imaginá-la ali, esfregando o nariz dele na coisa.

– É isso mesmo – diz Cheswick, colocando-se ao lado de McMurphy. – Esfrega nossos narizes em nossos erros.

– Por que é que ele não a manda embora?

– Neste hospital – diz Harding – o médico não tem o poder de contratar e despedir. Esse poder é do supervisor, e o supervisor é uma mulher, uma velha e querida amiga da Srta. Ratched; elas foram enfermeiras do Exército, na mesma ocasião, na década de 30. Nós aqui somos vítimas de um matriarcado, amigo, e o médico é tão impotente contra ele como nós. Ele sabe que tudo que a Ratched tem de fazer é pegar aquele fone que você vê ali junto do cotovelo dela, chamar a supervisora e dizer, aah, digamos, que o médico parece estar fazendo um grande número de requisições de Demerol…

– Espere aí, Harding, não estou entendendo todo esse papo técnico.

– Demerol, meu amigo, é um preparado sintético, duas vezes mais forte para criar dependência que a heroína. É muito comum que os médicos sejam viciados nele.

– Aquele peidinho? Ele é um viciado em drogas?

– Tenho certeza de que não sei.

– Então como é que ela começa acusando-o de…

– Ah, você não está prestando atenção, meu amigo. Ela não acusa. Ela precisa apenas insinuar, insinuar qualquer coisa, entende? Não reparou hoje? Ela chama um homem até a Sala das Enfermeiras e lá o interroga sobre um Kleenex que foi encontrado debaixo da cama dele. Nada mais, apenas interrogar. E ele se sentirá como se estivesse mentindo para ela, qualquer que seja sua resposta. Se alega que estava limpando uma caneta, ela diz "eu sei, uma caneta", ou se ele afirma que estava resfriado, limpando o nariz, ela diz "eu sei, resfriado", e balança a cabecinha grisalha bem penteada e sorri o seu sorrisinho limpo e vira-se e volta para a Sala das Enfermeiras, deixa-o de pé ali, perguntando-se apenas para que diabo foi que ele usou o Kleenex. - Ele começa a tremer de novo e os ombros tornam a se dobrar em sua volta. – Não, ela não precisa acusar. Ela é um gênio em insinuações. Alguma vez você a ouviu, durante a nossa discussão hoje, alguma vez a ouviu me acusar de alguma coisa? No entanto, parece que fui acusado de uma porção de coisas, de ciúme e paranóia, de não ser homem bastante para satisfazer minha mulher, de ter relações com meus amigos homens, de segurar o cigarro de maneira efeminada, e até, lembro-me, fui acusado de nada ter entre as pernas, a não ser um chumaço de cabelos… e, por falar nisso, cabelos tão macios, louros e fofos! Capadora de colhões? Oh, você a está subestimando!

Harding cala-se de repente e se inclina para frente, para segurar as mãos de McMurphy entre as suas. Seu rosto está estranhamente inclinado, pontiagudo, cheio de mossas vermelhas e cinzentas, uma garrafa de vinho arrebentada.

– Este mundo… pertence aos fortes, meu amigo! – continua ele. – O ritual da nossa existência está baseado em os fortes ficarem mais fortes por devorarem os mais fracos. Nós temos de encarar isso. É mais do que certo que seja assim. Temos de aprender a aceitá-lo como uma lei da natureza. Os coelhos aceitam o seu papel no ritual e reconhecem o lobo como o forte. Para se defender, o coelho torna-se esperto, assustado, arredio e cava buracos e se esconde quando o lobo está por perto. E ele resiste, vai continuando. Conhece o seu lugar. É absolutamente certo que ele não irá desafiar o lobo para um combate. Ora, diga-me, isto seria inteligente? Seria?

Ele solta a mão de McMurphy, torna a se recostar e cruza as pernas, dá uma outra longa tragada no cigarro. Tira o cigarro da estreita fenda que é o seu sorriso, e o riso recomeça – Iii-iii-iii – como um prego sendo arrancado…

– Sr. McMurphy… meu amigo… não sou um frango, sou um coelho. O médico é um coelho. O Cheswick, ali, é um coelho. Billy Bibbit é um coelho. Todos nós aqui somos coelhos, com idades e graus variados, sal – ti – tando pelo nosso mundo de Walt Disney. Oh, não me compreenda mal, não estamos aqui dentro porque somos coelhos, seríamos coelhos onde quer que estivéssemos, estamos todos aqui porque não conseguimos nos ajustar ao fato de sermos coelhos. Nós precisamos de um bom lobo forte, como a enfermeira, para nos ensinar qual é o nosso lugar.

– Cara, você está falando como um idiota. Está querendo me dizer que vai ficar sentado sem se mexer e deixar uma velha qualquer de cabelo azulado convencer você de que você é um coelho?

– Não me convencer de que eu sou, não. Eu nasci coelho. Apenas olhe para mim. Eu só preciso da enfermeira para ficar contente com o meu papel.

– Você não é porra de coelho nenhum!

– Vê as orelhas? o nariz se arrebitando? o rabinho bonitinho de pompom?

– Você está falando como um doido…

– Como um doido? Que esperto.

– Merda, Harding, não quis dizer isso. Você não é louco, não desse jeito. Eu quis dizer, diabo, eu fiquei surpreendido de ver como todos vocês são sãos. Tanto quanto eu possa dizer, vocês não são mais loucos do que qualquer babaca médio que anda pelas ruas.

– Ah, sim, o babaca médio que anda pelas ruas.

– Mas, sabe, não loucos de maneira que os filmes pintam gente louca. Vocês só estão perturbados e… como se fossem…

– Como se fôssemos coelhos, não é isso?

– Coelhos, porra nenhuma! Não têm nada a ver com coelhos, droga.

– Sr. Bibbit, dê umas saltitadas por aí para o Sr. McMurphy ver. Sr. Cheswick, mostre a ele como o senhor é peludo.

Billy Bibbit e Cheswick se transformam em coelhos brancos agachados, bem diante dos meus olhos, mas estão envergonhados demais para fazer qualquer das coisas que Harding mandou.

– Ah, eles estão acanhados, Sr. McMurphy. Não é uma gracinha? Ou talvez os caras estejam pouco à vontade porque não ficaram do lado do amigo. Talvez eles estejam sentindo-se culpados pela maneira como, mais uma vez, eles a deixaram fazê-los suas vítimas, transformando-os em seus interrogadores. Alegrem-se, amigos, não têm razão alguma para se sentirem envergonhados. Está tudo como deve ser. Não faz parte do papel do coelho tomar partido do companheiro. Isso teria sido idiota. Não, vocês foram espertos, covardemente, mas espertos.