(*) Medida de volume equivalente a 1 metro cúbico.
“Mais a coisa ia, mais a gente enfraquecia e menos era capaz de fazer o serviço. Para cúmulo do azar, botaram em cima de nós um guarda especial, que não era um vigilante, mas um árabe. Ele chegava conosco ao canteiro de obras, se sentava à vontade, o nervo de boi entre as pernas, e não parava de nos insultar. Comia fazendo ruído com as mandíbulas, para que a gente ficasse com água na boca. Em resumo, um tormento contínuo. A gente tinha dois canudos com 3 000 francos cada um, para fugir. Um dia, resolvemos comprar o árabe. A situação ficou pior. Por sorte, ele sempre acreditou que a gente só tinha um canudo. Seu sistema era fácil: por 50 francos, por exemplo, ele nos deixava ir roubar nos esteres, recebidos na véspera, pedaços de madeira que escaparam da pintura e, desse jeito, a gente completava o nosso estere do dia. Assim, hoje 50, amanhã 100 francos, ele nos tirou quase 2 000 francos.
“Como tivéssemos ficado em dia com nosso trabalho, o árabe foi retirado. E então, pensando que ele não nos denunciaria porque nos tinha limpado de tanto dinheiro, procurávamos, no mato, esteres já recebidos para fazer a mesma operação que fazíamos com o árabe. Um dia, o árabe nos seguiu passo a passo, escondido, para ver se a gente roubava madeira. Depois, ele apareceu:
“- Ah! Sempre roubando madeira e nada de pagar! Se não derem para mim 500 francos, eu denuncio vocês.
“Pensando que se tratava apenas de uma ameaça, a gente recusou. No dia seguinte, ele voltou.
“- Ou pagam ou nesta noite vão para o calabouço.
“A gente tornou a recusar. De tarde, ele voltou acompanhado dos guardas. Foi horrível, Papillon! Depois de nos botarem nus, levaram a gente até os esteres de onde nós tínhamos tirado madeira e, perseguidos por estes selvagens, chicoteados com nervo de boi pelo árabe, fomos obrigados a desfazer os nossos esteres e a completar cada um dos que nós tínhamos roubado. Esta “corrida” durou dois dias, sem comer, nem beber. Com freqüência, a gente caía. O árabe nos levantava a pontapés ou com chicotadas de nervo de boi No fim, caímos no chão, não agüentávamos mais. E você sabe como ele fez para nos levantar? Pegou uns ninhos, do tipo de ninho de vespas selvagens, que são habitados por moscas de fogo. Cortou o galho, onde o ninho estava pendurado, e boiou em cima da gente. Loucos de dor, nós não só nos levantamos, mas corremos feito malucos… Não adianta contar o que a gente sofreu. Você sabe como dói urna picada de vespa. Imagine cinqüenta ou 60 picadas. Essas moscas de fogo queimam ainda mais horrivelmente do que as vespas.
“Eles deixaram a gente a pão e água num calabouço, durante dez dias, sem fazer curativos. Mesmo passando mijo por cima, as ferroadas arderam três dias sem parar. Perdi o olho esquerdo, que foi atacado por uma dezena de moscas de fogo. Quando nos levaram de volta ao campo, os outros condenados resolveram ajudar a gente. Cada um resolveu dar um pedaço de madeira dura cortada do mesmo tamanho. Isso nos dava quase 1 estere diário e nos ajudava muito, porque nós dois juntos só tínhamos 1 estere a fazer por dia. Custava um bocado, mas a gente conseguia fazer. Pouco a pouco, recuperamos as forças. A gente comia muito. E foi por acaso que tivemos a idéia de nos vingar do cabra com as formigas. Procurando madeira dura, a gente achou um ninho enorme de formigas carnívoras num matagal, começando a devorar uma corça grande como uma cabra.
“O sujeito fazia sempre suas rondas pelo trabalho e, um belo dia, com uma porretada do cabo do machado, a gente derrubou o cabra e o arrastou para junto do formigueiro. Tiramos a roupa dele e amarramos o homem à árvore, deitado na terra em arco, os pés e as mãos ligados por cordas grossas, que serviam para amarrar a madeira.
“Com o machado, a gente fez nele algumas feridas em diferentes partes do corpo. Enchemos a boca dele com ervas, para que não gritasse, amarramos uma mordaça e ficamos esperando. As formigas só atacaram quando subiram numa vara que mergulhamos no formigueiro e depois sacudimos por cima do corpo do cabra.
“A coisa não demorou. Meia hora depois, as formigas atacaram aos milhares. Papillon, já viu formigas carnívoras?”
– Não, nunca. Vi formigas pretas grandes.
– Estas são pequenininhas e vermelhas como sangue. Elas arrancam pedacinhos microscópicos de carne e levam para o formigueiro. Se nós sofremos com as vespas, imagine o que ele não teve de sofrer, esfolado vivo por milhares de formigas. Sua agonia durou dois dias completos e uma manhã. Vinte e quatro horas depois, ele não tinha mais olhos.
‘Reconheço que fomos impiedosos em nossa vingança, mas é preciso ver o que ele nos fez. Foi por milagre que a gente não morreu. O cabra, está claro, foi procurado por toda parte e os outros guarda-chaves árabes, como também os vigilantes, suspeitavam que a gente tinha alguma coisa a ver com esse desaparecimento.
“Num outro matagal, fomos abrindo, todo dia, pouco a pouco, um buraco para meter aí os restos do árabe. Ainda não tinham descoberto nada, quando um guarda viu a gente preparando um buraco. Quando a gente ia para o trabalho, ele seguiu atrás de nós, para ver onde íamos parar. Foi o que nos perdeu.
“Uma manhã, logo quando chegamos ao trabalho, pegamos o árabe ainda cheio de formigas, mas já quase um esqueleto, e, no momento em que íamos arrastar o corpo para a cova (não era possível carregar, sem sofrer mordidas de sangrar das formigas), fomos surpreendidos por três árabes guarda-chaves e por dois vigilantes. Eles esperaram pacientemente, bem escondidos, que a gente fizesse aquilo: enterrar o cabra.
“O negócio é este. Declaramos oficialmente que primeiro matamos e, depois, demos para as formigas. A acusação, apoiada pelo laudo do médico legista, diz que não tem nenhuma ferida mortal. Sustenta que nós fizemos o árabe ser devorado vivo.
“Nosso guarda defensor (porque, por lá, há vigilantes que trabalham como rábulas) disse que, se nossa tese for aceita, a gente pode esperar salvar a cabeça. Em caso contrário, estamos perdidos. Francamente, temos pouca esperança. Foi por isso que meu amigo e eu escolhemos você para herdeiro, sem lhe dizer nada.”
– Esperemos que eu não tenha de herdar de vocês, é o que desejo de todo coração.
Acendemos um cigarro e vejo que eles olham com o jeito de quem diz: “E agora, vai falar?”
– Escutem, vejo que estão esperando pelo que me pediram antes de contar o caso de vocês: meu modo de julgar o caso, como homem. Uma última pergunta, que não terá nenhuma influência na minha decisão:
– Que pensa a maioria desta sala e por que vocês não falam com ninguém?
– A maioria acha que a gente devia ter matado o homem, mas não botar para ser comido vivo. Quanto ao nosso silêncio, não falamos com ninguém porque, um dia, teve uma ocasião para a gente se revoltar e cair fora e eles não fizeram isso.
– Minha opinião, meus chapas, é esta: fizeram bem de devolver com cem vezes mais o que ele fez para vocês: o golpe do ninho de vespas, ou moscas de fogo, é imperdoável. Se forem guilhotinados, no último momento pensem intensamente numa coisa só: “Vão cortar minha cabeça, isso vai durar trinta segundos, entre me amarrarem, me empurrarem para o buraco da guilhotina e fazerem cair o cutelo. A agonia do cabra durou sessenta horas. Saio ganhando”. No que concerne ao pessoal da sala, não sei se vocês têm razão, porque podiam acreditar que uma revolta, naquele dia, permitia urna evasão em comum, enquanto os outros podiam ter opinião diferente. Por outro lado, numa revolta, a gente pode sempre acabar matando, sem querer isso antes. Ora, entre todos que estão aqui, acho que os únicos que estão com a cabeça perigando são vocês e os irmãos Graville. Meus chapas, cada situação particular traz reações diferentes, obrigatoriamente.
Satisfeitos com a nossa conversação, os dois pobres-diabos se retiram e recomeçam a viver no silêncio, que romperam para mim.