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Ontem, três dias após o nosso regresso, me levaram para a sala comum. Quarenta homens aguardam aí o conselho de guerra. Uns acusados de roubo, outros de saque, de incêndio premeditado, de homicídio, de tentativa de homicídio, de assassinato, de tentativa de evasão e até de antropofagia. Somos vinte de cada lado do tabique de madeira, acorrentados à mesma barra de ferro de mais de 15 metros de comprimento. Às 6 horas da tarde, o pé esquerdo de cada homem é ligado à barra comum por uma argola de ferro. Às 6 horas da manhã, tiram-nos estes grossos anéis e, durante todo o dia, a gente pode se sentar, passear, jogar damas, conversar no que a gente chama de passeio, uma espécie de aléia de 2 metros de largura, que atravessa a sala. Durante o dia, não tenho tempo para me chatear. Todo mundo vem me ver, aos grupinhos, para que eu conte a evasão. Ficam todos gritando como possessos, quando digo que abandonei voluntariamente minha tribo de índios guajiros, Lali e Zoraima.

– Que é que você procurava, meu camarada? – diz um parisiense, ouvindo a história. – Bondes? Elevadores? Cinemas? A luz elétrica com sua corrente de alta tensão para acionar a cadeira elétrica? Ou queria tomar banho no tanque da Praça Pigalle? Mas, como é que pode, meu camarada! – continua o garotão. – Você tem duas pequenas, cada uma mais bacana do que a outra, vive nu no meio da natureza com um bando de nudistas do barulho, come, bebe, vai à caça; tem o mar, o sol, a areia quente e até as pérolas das ostras são suas, de graça… e você não acha nada melhor do que abandonar tudo isto para ir aonde? Diga? Para ter de atravessar as ruas na correria para não ser atropelado pelos carros, ser obrigado a pagar aluguel, a pagar o alfaiate, a conta da eletricidade e do telefone e, se quiser um carango, ter de quebrar o galho ou trabalhar como uma besta para um patrão e ganhar salário só para não morrer de fome? Não compreendo, meu chapa! Você estava no céu e voluntariamente volta ao inferno onde, além das preocupações com a vida, tem de estar de olho para escapar de todos os tiras do mundo, que correm atrás de você! É verdade que você ainda está com o sangue fresquinho da França e não teve tempo para ver suas faculdades físicas e morais decaírem. Quanto a mim, com meus dez anos de forçado, nem consigo mais compreender você. Enfim, de todo jeito, seja bem-vindo entre nós e, como certamente você tem a intenção de recomeçar, conte com a gente para ajudar. É ou não é, meus chapas? Estão de acordo?

Os caras concordaram e eu agradeço a todos.

São, bem vejo, homens perigosos. Em virtude de nossa promiscuidade, é muito difícil que um ou outro não perceba quem está com um canudo. De noite, como todo mundo está preso à barra da justiça comum, não é difícil matar alguém impunemente. Basta que, de dia, em troca de certa quantidade de gaita, o guarda-chaves árabe aceite não fechar bem a argola. Assim, de noite, o homem interessado se solta, faz o que decidiu fazer e tranqüilamente volta a se deitar em seu lugar, tomando o cuidado de fechar bem sua argola. Como é indiretamente cúmplice, o árabe fica de boca calada.

Já faz três semanas que voltei. Passaram bem depressa. Começo a andar um pouco, me segurando na barra do corredor, que separa as duas fileiras de tabiques. Faço as primeiras experiências. Na semana passada, na instrução, vi os três guardas do hospital, que a gente moeu de pancada e desarmou. Estão muito contentes com a nossa volta e aguardam que, um dia, a gente caia num lugar onde eles estejam de serviço. Porque, depois da nossa evasão, os três sofreram sanções graves: suspensão de seis meses de licença na Europa; suspensão do suplemento colonial do ordenado deles durante um ano. Não é preciso dizer que nosso reencontro não foi muito cordial. Contamos estas ameaças na instrução, a fim de que sejam registradas.

O árabe está mais bem comportado. Só disse a verdade, sem exagerar e omitindo o papel desempenhado por Maturette. O capitão-juiz de instrução insistiu muito para saber quem nos arranjou o barco. Ficamos em dificuldade para lhe contar estórias inverossímeis, como, por exemplo, a confecção de jangadas por nossos próprios meios, etc.

Por causa da agressão aos vigilantes, ele nos diz que fará tudo que puder para conseguir cinco anos para mim e Clousiot e três para Maturette.

– E, uma vez que o senhor é o conhecido Papillon (borboleta), não perde por esperar, eu lhe cortarei as asas de modo que não possa mais voar.

Fico com medo de que ele tenha razão.

Mais de dois meses esperando para comparecer ao tribunal. Lamento muito não ter colocado no meu canudo uma ou duas pontas de flechinhas envenenadas. Se as tivesse, poderia talvez jogar no tudo ou nada no quartel disciplinar. Agora faço progresso dia a dia. Caminho cada vez melhor. François Sierra não falta nunca: pela manhã e à tarde, vem me fazer massagem com óleo canforado. Estas massagens-visitas me fazem um bem enorme, aos pés e ao moral. É tão bom ter um amigo na vida!

Observei que esta longa evasão nos deu um prestígio indiscutível junto a todos os forçados. Estou certo de que nos encontramos em segurança completa no meio destes homens. Não corremos o risco de ser assassinados por motivo de roubo. A grande maioria não aceitaria isso e é seguro que os culpados seriam liquidados. Todos. sem exceção, nos respeitam e têm mesmo certa admiração por nós. E as porradas que demos nos guardas levam os outros a pensar que estamos dispostos a fazer o diabo. É muito interessante se sentir em segurança.

Dia a dia, caminho um pouco mais e, com freqüência, graças a uma garrafinha que Sierra me deixa, tem gente que se oferece para me fazer massagem não só nos pés, mas também nos músculos das pernas, que esta longa imobilidade atrofiou.

UM ÁRABE ENTREGUE ÀS FORMIGAS

Nesta sala, há dois homens taciturnos, que não falam com ninguém. Sempre colados um com o outro, só falam entre si, numa voz tão baixa, que pessoa alguma consegue ouvir. Um dia, ofereço a um deles um cigarro americano de um maço que Sierra me trouxe. Ele me agradece e, a seguir, me diz:

– François Sierra é seu amigo?

– Sim, é meu melhor amigo.

– Talvez um dia, se tudo acabar mal, nós mandemos nossa herança para você por intermédio dele.

– Que herança?

– Nós resolvemos, eu e meu amigo, que, se formos guilhotinados, a gente passa a você nosso canudo, para que lhe sirva a uma nova evasão. Nós entregaremos a François Sierra, para que você o receba.

– Vocês acham que vão ser condenados à morte?

– É quase certo, a gente tem pouca chance de escapar.

– Se é tão certo que vocês vão ser condenados à morte, por que estão nesta sala comum?

– Creio que eles têm medo de que a gente se suicide, se ficarmos sozinhos numa cela.

– Ah! Sim, é possível. E o que é que vocês fizeram?

– A gente colocou um cabra para ser comido pelas formigas carnívoras. Digo isso a você porque, infelizmente, eles têm provas indiscutíveis. Fomos apanhados em flagrante.

– E onde aconteceu isso?

– No quilômetro 42, no campo da morte, junto à enseada Sparouin.

O companheiro dele se aproxima de nós, é um toulousano. Eu lhe ofereço um cigarro americano. Ele se senta perto de seu amigo, na minha frente.

– Nunca pedimos a opinião de ninguém – diz o recém-chegado -, mas teríamos a curiosidade de saber o que você pensa a respeito de nós.

– Como quer que diga, sem saber coisa alguma, se você teve razão ou não de dar um homem, mesmo um filho da puta, para ser comido pelas formigas? Para dar minha opinião, precisaria conhecer toda a história, de A a Z.

“Eu vou lhe contar”, diz o toulousano. “O campo do quilômetro 42, a 42 quilômetros de Saint-Laurent, é um campo florestal. Ali, os forçados são obrigados a cortar, todo dia, 1 metro cúbico de madeira dura. Toda noite, a gente deve ficar no mato, junto da madeira que cortou bem arrumada. Os guardas, acompanhados de guarda-chaves árabes, vêm verificar se a gente fez o serviço. Quando é recebido, cada estere (*) de madeira é marcado com tinta vermelha, verde ou amarela. Isso depende dos dias. Eles só aceitam o trabalho se todos os pedaços forem de madeira dura. Para ter melhor resultado, a gente faz uma equipe de dois. Muitas vezes não fomos capazes de cumprir a tarefa. Então botavam a gente, de noite, no calabouço, sem comer, e, de manhã, sempre sem comer, mandavam a gente de volta ao trabalho, com a obrigação de fazer o que faltava da véspera, mais a medida do dia. A gente ia morrer como cachorro.