Não sou um intelectual para pintar, caro leitor – se um dia esse livro tiver leitores -, com a intensidade necessária, com inspiração bastante forte, a emoção, a formidável impressão de respeito por nos mesmos; sentimos que éramos capazes de uma reabilitação, senão de uma nova vida. Esse batismo imaginário, esse banho de pureza, essa elevação do meu ser acima do lodo onde eu estava atolado, essa maneira de me colocar diante de uma responsabilidade real da noite para o dia acabam de fazer de mim um outro homem de uma maneira tão simples, que o complexo do forçado que mesmo livre traz consigo seus grilhões e acredita que alguém sempre o vigia, que tudo que vi, passei e suportei, tudo que agüentei, tudo que me levava a ser um homem tarado, podre, perigoso, passivamente obediente por fora e terrivelmente insidioso em sua revolta, tudo isso desapareceu como por encanto. Obrigado, Dr. Bowen, advogado de Sua Majestade, obrigado por ter feito de mim um outro homem em tão pouco tempo!
A loiríssima jovem dos olhos azuis corno o mar está sentada comigo, embaixo dos coqueiros da casa de seu pai. Buganvílias vermelhas, amarelas e malva, todas floridas, dão ao jardim o toque de poesia que é necessário neste instante.
– Senhor Henri (ela diz “Senhor”; há quanto tempo não me chamam de “Senhor”!), como papai disse ontem, uma incompreensão injusta das autoridades inglesas faz com que infelizmente vocês não possam ficar aqui. Eles dão apenas quinze dias para que vocês descansem e tornem a partir por mar. De manhã cedo fui ver seu barco, é muito leve e pequeno para a viagem tão longa que os aguarda. Espero que vocês cheguem a uma nação mais hospitaleira que a nossa e mais compreensiva. Todas as ilhas inglesas têm a mesma atitude nesses casos. Peço ao senhor que, se na futura viagem sofrer muito, não guarde rancor do povo que vive nessas ilhas; ele não é responsável por essa maneira de ver as coisas, são ordens da Inglaterra, emanadas de pessoas que não conhecem vocês. O endereço de papai é 101 Queen Street, Port-of-Spain, Trinidad. Peço-lhe, se Deus quiser que isso seja possível, que nos escreva algumas palavras para sabermos do seu destino.
Fico tão emocionado, que não sei o que responder. A Sra. Bowen aproxima-se de nós. É uma mulher muito bonita; tem uns quarenta anos, cabelos de um loiro-escuro, olhos verdes. Usa um vestido branco muito simples, preso por um cordão branco, e umas sandálias verde-claro.
– Senhor, meu marido só vai voltar às 5 horas. Está tentando conseguir que vocês possam ir no seu carro, sem escolta policial, até a capital. Quer evitar também que vocês passem a primeira noite na Estação de Polícia de Port-of-Spain. O seu amigo ferido irá diretamente para a clínica de um medico amigo, e vocês dois irão para a hospedaria do Exercito da Salvação.
Maturette vem encontrar-se com a gente no jardim, foi ver o barco que está cercado, ele diz, de curiosos. Não mexeram em nada. Examinando o barco, os curiosos encontraram uma bala encravada na parte de baixo do leme, alguém pediu licença para tirá-la como lembrança. Ele respondeu: “Captain, captain”. O índio compreendeu que precisava perguntar ao capitão. Lá pelas tantas, o índio quer saber por que não soltamos as tartarugas.
– Vocês têm tartarugas? – pergunta a jovem. – Vamos ver.
Vamos até o barco. No caminho, um indiozinho encantador pega sem cerimônias a minha mão. “Good afternoon”, boa tarde, dizia toda essa gente colorida. Tiro as duas tartarugas;
– O que é que a gente vai fazer? Vamos jogá-las no mar? Ou a senhora quer ficar com elas para pôr no seu jardim?
– O tanque do quintal é de água do mar. Vamos colocá-las nesse tanque, assim terei uma lembrança sua.
– Isso mesmo – respondo.
Distribuo entre as pessoas que lá estão tudo que há dentro do barco, menos a bússola, o fumo, o tonel, a faca, o facão, o machado, as cobertas e o revólver, que escondo entre as cobertas (e que ninguém viu). Às 5 horas chega o Dr. Bowen:
– Senhores, está tudo arranjado. Eu mesmo vou levá-los até a capital. Antes disso vamos deixar o ferido na clínica e depois vamos imediatamente para a hospedaria.
Instalamos Clousiot no assento traseiro do carro. Vou agradecer à filha, quando sua mãe chega com uma mala na mão, dizendo:
– Queiram aceitar algumas coisas de meu marido, nós as oferecemos de todo o coração.
Que dizer diante de tanta bondade humana? “Obrigado, infinitamente-obrigado.” E partimos no carro, que tem a direção à direita. Às 15 para as 6 chegamos à clínica. Chama-se Saint-George. Uns enfermeiros colocam Clousiot em cima de uma maca, numa enfermaria onde há um índio sentado na cama. O médico chega, aperta a mão de Bowen e depois a nossa, não fala francês mas pede a Bowen para nos dizer que Clousiot será bem atendido e que nós poderemos vir vê-lo sempre que quisermos. Com o carro de Bowen atravessamos a cidade. Ficamos maravilhados de ver que é iluminada, com seus carros, suas bicicletas. Brancos, negros, amarelos, índios, chineses andam juntos pelas calçadas desta cidade toda de madeira que é Port-of-Spain. Chegamos ao Exército da Salvação, uma hospedaria na qual somente o andar térreo é de pedra e o restante é de madeira, casa bem situada numa praça iluminada onde consegui ler “Fish Market” (Mercado de Peixe); o capitão do Exército da Salvação nos recebe em companhia de todo o seu estado-maior, mulheres e homens. Fala um pouco de francês, todos nos dirigem palavras em inglês, que não entendemos, mas os rostos são tão sorridentes, os olhares tão acolhedores, que sabemos que eles dizem coisas delicadas.
Levam-nos para um quarto no segundo andar, com três camas – a terceira reservada para Clousiot -, um banheiro pegado ao quarto, com sabonete e toalha à nossa disposição. Depois de nos ter indicado o quarto, o capitão diz:
– Se quiserem comer, o jantar é em comum, às 7 horas, portanto daqui a meia hora.
– Não, não temos fome.
– Se quiserem passear pela cidade, aqui estão dois dólares antilhanos para tomarem um café, um chá, ou um sorvete. Por favor, não se percam. Quando quiserem voltar, perguntem o caminho com estas palavras: “Salvation Army, please?”
Dois minutos depois, estamos na rua, andamos na calçada, acotovelamo-nos com as pessoas, ninguém olha para nós, ninguém presta atenção em nós; respiramos profundamente, gozando com emoção esses primeiros passos livres numa cidade. Essa confiança contínua em nós, presente no fato de nos deixarem livres numa cidade bastante grande, nos anima e dá não apenas confiança em nós mesmos, mas também a perfeita consciência de que é impossível trair essa fé depositada em nós. Maturette e eu andamos lentamente no meio da multidão. Sentimos necessidade de nos aproximar das pessoas, de ser empurrados, de nos assimilar a elas para fazer parte do povo. Entramos num bar e pedimos cerveja. Parece que não é nada dizer: “Two beers, please”. É tão natural! Bom e além do mais parece-nos fantástico que uma índia com sua conchinha de ouro no nariz diga, depois de servir a gente: “Half a dollar, sir”. Seu sorriso de dentes de pérola, seus grandes olhos de um negro violeta, um pouquinho fechados nos cantos, os cabelos de azeviche que caem sobre seus ombros, o vestido meio aberto no princípio dos seios, deixando perceber a grande beleza deles, essas coisas fúteis, tão naturais para todo mundo, parecem para nós fantasticamente feéricas. Escute, Papi, não é verdade, não pode ser verdade que tão rapidamente, de morto-vivo, de forçado perpétuo, você esteja se transformando num homem livre!
Maturette paga, fica só com meio dólar. A cerveja é deliciosamente fresca e ele diz: “Tomamos outra?” A segunda rodada que ele gostaria de beber me parece uma coisa que não devemos fazer.
– Escute, não faz nem uma hora que você está em verdadeira liberdade e já pensa em se encher de bebida.
– Oh! por favor, Papi, não exagere! Entre tomar duas cervejas e se encher de bebidas há muita diferença.