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– Preciso fazer oeste, um quarto sul, para encontrar as Antilhas inglesas, é isso?

– Sim.

– Quantas milhas aproximadamente?

– Em dois dias, vocês estarão lá – diz o capitão.

– Até logo, obrigado a todos!

– O comandante do navio cumprimenta-os por sua coragem de marinheiros!

– Obrigado, adeus!

E o petroleiro vai embora suavemente, quase raspando na gente. Eu me afasto depressa, com medo dos redemoinhos das hélices; nesse momento, um marinheiro joga para mim um boné de marinheiro. Cai no meio do barco e com esse boné (com um galão dourado e uma âncora) na cabeça, dois dias depois, sem incidentes, chegamos a Trinidad.

TRINIDAD

Os pássaros, muito antes que os víssemos, nos anunciaram a terra. São 7 horas e meia da manhã quando eles vêm dar voltas em torno da gente. “Chegamos, chefe! Chegamos! Conseguimos a primeira parte da fuga, a mais difícil. Viva a liberdade!” Cada um de nós exterioriza sua alegria com exclamações infantis. Nosso rosto está coberto de manteiga de cacau que o navio encontrado nos deu de presente, para aliviar as queimaduras. Lá pelas 9 horas vemos terra. Um vento fresco e suave leva a gente a uma boa velocidade, sobre um mar pouco agitado. Somente por volta das 4 horas da tarde é que percebemos os detalhes de uma ilha comprida, cercada por pequenos grupos de casas brancas e com o cume coberto de coqueiros. Ainda não se consegue distinguir se é mesmo uma ilha ou a ponta de uma península, nem saber se as casas são habitadas. Foi necessária mais uma hora ainda, para distinguirmos as pessoas que correm para a praia aonde estamos chegando. Em menos de vinte minutos, uma multidão colorida está reunida. Essa pequena aldeia veio receber-nos à beira do mar. Mais tarde ficamos sabendo que a ilha se chama San Fernando.

A 300 metros da costa jogo a âncora, que se fixa imediatamente. Faço isso porque quero ver a reação dessas pessoas e também para não arrebentar o meu barco quando encostar, se o fundo for de coral. Recolhemos as velas e esperamos. Uma pequena canoa vem em nossa direção. A bordo, dois negros que remam e um branco com um capacete colonial.

– Bem-vindos a Trinidad – diz em francês castiço o branco. Os negros riem com todos os dentes.

– Obrigado, senhor, pelas suas boas palavras. O fundo da praia é de coral ou de areia?

– É de areia, pode chegar sem perigo até a praia.

Levantamos a âncora e as ondas nos empurram mansamente até a praia. Assim que tocamos, dez homens entram dentro da água e, com um puxão só, arrastam o barco para o terreno seco. Olham para a gente, tocam a gente com gestos acariciantes, as mulheres, pretas ou índias, ou chinesas, nos convidam com gestos. Todos querem levar-nos a casa deles, é o que explica em francês o branco. Maturette pega um punhado de areia e a leva até a boca, para beijá-la. É um delírio. O branco, com quem já falei do estado de Clousiot, faz que o transportem para sua casa, bem perto da praia. Diz que podemos deixar tudo até amanhã no barco, que ninguém vai mexer em nada. Todos me chamam de “captain”, dou risada com esse apelido. Todos me dizem: “Good captain, long ride on small boat!” (Bom capitão, viagem longa em barco pequeno!)

Desce a noite e, depois de pedir para empurrarem o barco pouco mais longe do mar e amarrá-lo a outro muito maior que está sobre a areia, sigo o inglês até a casa dele. É um bangalô como os que se costuma ver por toda parte, em terra inglesa; alguns degraus de madeira, uma porta com tela metálica. Entro atrás do inglês, Maturette me segue. Ao entrar, vejo Clousiot, sentado numa poltrona, com a perna ferida em cima de uma cadeira, se pavoneando entre uma senhora e uma jovem.

– Minha esposa e minha filha – diz o senhor. – Tenho um filho que está estudando na Inglaterra.

– Sejam bem-vindos a esta casa – diz a senhora em francês.

– Sentem-se, senhores – diz a jovem, que puxa duas poltronas de vime para a frente.

– Obrigado, senhoras, não se incomodem conosco.

– Por quê? Sabemos de onde vocês vêm, fiquem tranqüilos. Bem-vindos a esta casa!

O homem é advogado, chama-se Dr. Bowen, tem seu escritório na capital, a 40 quilômetros, em Port-of-Spain, capital de Trinidad. Trazem chá com leite, torradas, manteiga, geléia. Foi nossa primeira noite de homens livres, nunca mais vou esquecer. Nem uma palavra sobre o passado, nenhuma pergunta indiscreta, somente há quantos dias estávamos no mar e como foi a viagem; se Clousiot sofria muito e se nós queríamos avisar a polícia amanhã ou esperar mais um dia antes de avisá-la; se tínhamos parentes vivos, mulheres, filhos. Se queríamos escrever para eles, as cartas seriam colocadas no correio. O que quer dizer: uma recepção excepcional, tanto do povo na praia quanto dessa família cheia de atenções incríveis para com três foragidos

O Dr. Bowen consulta pelo telefone um médico, que diz para levarmos o ferido à sua clínica amanhã de tarde, para ele tirar uma radiografia e ver o que precisa fazer. O Dr. Bowen telefona para Port-of-Spain, ao comandante do Exército da Salvação. Ele diz que vai providenciar para nós um quarto na hospedaria do Exército da Salvação, que poderemos ir quando quisermos, e que devemos deixar o barco bem guardado, se for bom, porque vamos precisar dele para ir embora. Pergunta se somos forçados ou exilados: respondemos que somos forçados. O advogado parece gostar do fato de sermos forçados.

– Querem tomar banho e fazer a barba? – pergunta a jovem. – Por favor, não recusem, isso não nos incomoda nem um pouco. No banheiro vão encontrar umas roupas, espero que sirvam.

Vou ao banheiro, tomo um banho, faço a barba e saio bem penteado e com uma calça cinzenta, uma camisa branca, sapatos de tênis e meias brancas.

Um índio bate à porta com um pacote debaixo do braço e o dá para Maturette, dizendo que o médico falou que eu era mais ou menos do mesmo tamanho do doutor e que não precisava de nada para me vestir, mas que ele, o pequeno Maturette, não conseguiria encontrar roupas para seu uso porque ninguém na casa do advogado tinha seu tamanho. Faz uma mesura na frente da gente, como os muçulmanos, e se retira. Diante de tanta bondade, o que dizer? A emoção que enche meu coração é indescritível. Clousiot vai deitar-se primeiro e nós cinco ficamos trocando idéias sobre coisas diferentes. O que mais intrigava as encantadoras senhoras era o que pensávamos fazer para reconstruir nossa existência. Nada do passado, tudo a respeito do presente e do futuro. O Dr. Bowen lastimava que Trinidad não permitisse que os foragidos se instalassem na ilha. Ele explica que, por várias vezes, havia solicitado essa medida para alguns, mas nunca fora aceita.

A jovem fala um francês castiço, como o pai, sem sotaque nem erros de pronúncia. É loira, cheia de pintinhas e deve ter entre dezessete e vinte anos. prefiro não perguntar sua idade. Ela diz:

– Vocês são muito jovens e a vida espera por vocês; não sei o que fizeram para ser condenados e não quero saber, mas o fato de terem a coragem de se lançar no mar num barco tão pequeno, para fazer uma viagem tão longa e tão perigosa, demonstra que vocês estão dispostos a pagar qualquer preço para serem livres, e isso tem muito mérito.

Dormimos até as 8 da manhã. Ao levantar, encontramos a mesa posta. As duas senhoras falam muito naturalmente que o Dr. Bowen partiu para Port-of-Spain e só vai voltar à tarde com as informações necessárias para agir em nosso favor.

Esse homem que abandona a casa com três forçados foragidos dá uma lição sem igual para nós, querendo dizer: “Vocês são pessoas normais; julguem se tenho ou não confiança em vocês; doze horas depois de conhecer vocês, deixo-os sozinhos na minha casa, com minha esposa e minha filha”. É uma maneira muda de nos dizer também: “Depois de conversar com vocês três, vi seres perfeitamente dignos de confiança ao ponto de me sentir seguro de que nem por gestos nem por palavras vão se portar mal dentro de minha casa; por isso vou deixá-los no meu lar, como se fossem velhos amigos”. Essa manifestação nos emocionou muito.