Ellis olha para baixo, para a poça em volta de seus pés com o maior dos espantos.

– Ora, obrigado – diz ele, e até se afasta uns poucos passos em direção à latrina antes que os pregos puxem suas mãos de volta para a parede.

McMurphy vem descendo a fileira de Crônicos, aperta a mão do Coronel Matterson, de Ruckly e do Velho Pete. Aperta mãos de Circulantes, Caminhantes e Vegetais, aperta mãos que ele tem de levantar dos colos como se estivesse apanhando passarinhos mortos, passarinhos mecânicos, maravilhas de ossos minúsculos e fios cuja corda acabou e caíram. Aperta a mão de todo mundo que encontra, exceto a do George Grande, o maníaco por limpeza, que sorri e recua, afastando-se daquela mão anti-higiênica; assim, McMurphy apenas o saúda e diz para a sua própria mão direita quando se vai afastando:

– Mão, como é que você acha que aquele sujeito ali descobriu todo o mal em que você já esteve metida?

Ninguém consegue imaginar qual é o objetivo dele, ou por que ele está fazendo tamanha encenação para conhecer todo mundo, mas é melhor do que fazer quebra-cabeças. Ele fica dizendo o tempo todo que é uma coisa necessária circular e conhecer os homens com quem irá lidar, parte do trabalho de um jogador. Mas ele deve saber que não vai tratar com nenhum demente de 80 anos que não poderia fazer mais nada com uma carta de baralho senão enfiá-la na boca e mascá-la durante algum tempo. Entretanto, parece que se está divertindo, como se fosse o tipo de pessoa que gosta de rir dos outros.

Eu sou o último. Ainda amarrado na cadeira no canto. McMurphy pára quando chega até onde estou, enfia novamente os polegares nos bolsos e se inclina para trás para rir, como se visse alguma coisa mais engraçada em mim do que em qualquer outra pessoa. De repente fiquei apavorado. Quem sabe, ele estivesse rindo porque soubesse que a maneira como eu estava sentado ali, com os joelhos puxados para cima e os braços em volta deles, olhando fixo para a frente, como se nada pudesse ouvir, não passava de encenação.

– Oobaa – disse ele – olha só o que nós temos aqui.

Lembro-me de toda essa parte realmente muito bem. Eu me lembro da maneira como ele fechou um olho e inclinou a cabeça para trás e olhou para baixo, rindo de mim por sobre aquela cicatriz cor de vinho no nariz que já estava sarando. De início pensei que estivesse rindo por causa do aspecto engraçado que eu tinha, um rosto de índio e cabelo preto e lustroso de índio, numa pessoa como eu. Pensei que talvez estivesse rindo de como eu parecia fraco. Mas é então que me lembro de ter pensado que ele estava rindo porque não se havia deixado enganar nem por um minuto pela minha encenação de surdo-mudo; não fazia diferença o quanto a encenação fosse habilidosa, ele me tinha apanhado e estava rindo e piscando para que eu soubesse.

– Qual é a sua história, grande chefe? Você parece com o Touro Sentado fazendo greve de ficar sentado. – Olhou para os Agudos, para ver se eles iriam rir da sua piada; quando apenas riram em silêncio, ele tornou a olhar para mim e piscou de novo. – Qual é o seu nome, chefe?

Billy Bibbit gritou do outro lado da sala:

– O n-n-nome dele é Bromden. Chefe Bromden. Mas todo mundo o chama de chefe Vassoura * , porque os enfermeiros o obrigam a varrer o chão uma gr-grande parte do tempo. Acho que não há m-muito mais que ele possa fazer. É surdo. – Billy apoiou o queixo nas mãos. – Se eu fosse s-s-surdo – suspirou – eu me mataria.

McMurphy continuava olhando para mim.

– Quando ele crescer, vai ficar bem grande, não vai? Gostaria de saber qual é a altura dele.

– Acho que alguém o m-m-mediu uma vez, deu mais de dois metros; mas mesmo se ele for grande, tem medo até da sua própria s-s-sombra. É só um gr-grande índio surdo.

– Quando o vi sentado aqui, pensei que ele parecia um índio mesmo. Mas Bromden não é um nome índio. De que tribo é ele?

– Não sei – disse Billy. – Ele já estava aqui qu-quando eu che-cheguei.

– Tenho informação do médico – disse Harding – de que ele só é meio-índio, um índio de Columbia, acho.

É uma tribo extinta de Columbia Gorge. O médico disse que o pai dele era líder da tribo, daí o título desse sujeito, chefe. Quanto a essa parte do nome "Bromden", temo que meus conhecimentos de tradições índias não cheguem até aí.

McMurphy inclinou-se baixando a cabeça bem perto da minha, de tal forma que eu tinha de olhar para ele.

– Isso é verdade? Você é surdo, chefe?

– Ele é su-su-surdo e mudo.

McMurphy franziu os lábios e olhou fixo para o meu rosto durante muito tempo. Então se endireitou novamente e estendeu a mão.

– Bem, que diabo, ele pode apertar mãos, não pode? Surdo, ou seja lá o que for. Por Deus, chefe, você pode ser grande, mas é bom apertar minha mão ou considerarei um insulto. E não é uma boa idéia insultar o novo machão doido do hospital.

Quando ele disse isso, olhou para trás, para Billy e Harding, e fez uma careta, mas deixou aquela mão na minha frente, grande como uma travessa de jantar.

Eu me lembro muito bem do aspecto daquela mão: havia trabalhado numa garagem; havia uma âncora tatuada nas costas da mão; havia um band-aid sujo no meio do nó dos dedos, a ponta descolando. Todo o resto das articulações dos dedos estava coberto de cicatrizes e cortes, antigos e recentes. Lembro que a palma da mão era lisa e dura como osso, de manejar os cabos de madeira de machados e enxadas, não a mão que se pensaria poder lidar com cartas. A palma era calejada, e os calos estavam rachados, e a sujeira entranhada nas rachaduras. Um mapa rodoviário de suas viagens para cima e para baixo pelo Oeste. Aquela palma fez um som arrastado contra a minha mão. Eu me lembro de que os dedos eram grossos e fortes fechando-se sobre os meus, e a minha mão começou a ficar estranha e começou a inchar ali naquela minha vareta de braço, como se ele estivesse transmitindo o seu próprio sangue para dentro dela. Latejava de sangue e força. Floresceu quase que tão grande como a dele, eu me lembro…

– Sr. McMurphy. É a Chefona.

– Sr. McMurphy, poderia vir até aqui, por favor?

É a Chefona. Aquele crioulo com o termômetro foi buscá-la. Ela está de pé ali, batendo com o termômetro no relógio de pulso, os olhos faiscando enquanto tenta avaliar o novo homem. Os lábios estão com aquele formato triangular, como os lábios de uma boneca, prontos para uma mamadeira de mentira.

– O enfermeiro Williams me disse, Sr. Murphy, que o senhor está sendo meio difícil com relação a tomar o banho da admissão. Isso é verdade? Por favor, compreenda, eu aprecio a maneira como tomou ao seu encargo aproximar-se dos outros pacientes, mas tudo no seu devido tempo, Sr. Murphy. Sinto muito interromper o senhor e o Sr. Bromden, mas por favor compreenda: todo mundo… tem de seguir as regras.

Ele inclina a cabeça para trás e dá aquela piscadela, mostrando que ela não o está enganando, da mesma maneira como eu não o enganei, que ele a apanhou. Olha para ela com um olho durante um minuto.

– A senhora sabe, dona – diz ele. – A senhora sabe… isto é exatamente o negócio que alguém sempre me diz a respeito das regras…

Ele sorri. Ambos sorriem, cada um avaliando o outro.

– … bem no momento em que eles descobrem que estou a ponto de fazer o extremo oposto.

Então ele solta minha mão.

* * *

Na saleta de paredes envidraçadas, a Chefona abriu um embrulho vindo de um endereço estrangeiro e está puxando para dentro das seringas hipodérmicas o líquido verde-leitoso que veio em vidrinhos no embrulho. Uma das enfermeirinhas, uma moça com um olho torto, que fica sempre espiando preocupado por sobre o ombro dela, enquanto o outro vai cuidando de suas tarefas rotineiras, apanha a bandeja de seringas cheias, mas não a leva logo embora.

– Srta. Ratched, qual é a sua opinião a respeito desse novo paciente? Quero dizer, puxa, ele é bem-apessoado e simpático e tudo, mas na minha humilde opinião ele realmente domina.

A Chefona experimenta uma agulha na ponta do dedo.

– Temo – ela enfia a agulha na tampa de borracha do vidro e levanta o êmbolo – que isto seja exatamente o que ele está planejando fazer: dominar. Ele é o que costumamos chamar de "manipulador", Srta. Flinn, um homem capaz de usar todo mundo e tudo para atingir seus objetivos pessoais.

– Ah. Mas. Quero dizer, num hospital para doentes mentais? Quais poderiam ser os objetivos dele?

– Uma porção de coisas diferentes. – Ela está calma, sorridente, ocupada no trabalho de encher as seringas. – Conforto e uma vida fácil, por exemplo; o sentimento de poder e de ser respeitado, talvez; vantagens monetárias… talvez todas essas coisas. Às vezes, os objetivos pessoais de um manipulador são simplesmente o rompimento mesmo da ala, apenas pelo prazer do rompimento. Há pessoas assim na nossa sociedade. Um manipulador pode influenciar os outros pacientes e destruí-los a um tal ponto que poderia levar meses para se conseguir fazer com que as coisas voltassem novamente ao normal. Com a atual filosofia permissiva em hospitais para doentes mentais, é fácil para eles escaparem impunemente. Há alguns anos era bem diferente. Lembro-me de que, há uns anos, nós tivemos na enfermaria um paciente, o Sr. Taber, e ele era um intolerável manipulador. Por algum tempo. – Ela desvia o olhar do trabalho, a seringa cheia pela metade diante do seu rosto, como uma batuta. Seus olhos ficam sonhadores e satisfeitos com a lembrança. – Seu Tay-bur – diz ela.

– Mas, puxa – diz a outra enfermeira – que diabo faria um homem querer fazer uma coisa como criar confusão na enfermaria, Srta. Ratched? Qual o motivo possível?…

Ela interrompe a enfermeirinha enfiando bruscamente a agulha na tampa de borracha do frasco, enche a seringa, puxa a agulha e coloca a seringa na bandeja. Eu observo sua mão estender na direção de outra seringa vazia, observo-a tomar impulso, girar sobre a tampa, descer.

– Parece esquecer, Srta. Flinn, que esta é uma instituição para insanos.

A Chefona costuma ficar realmente furiosa se alguma coisa impede o seu aparato de funcionar como uma máquina de precisão, exata e suave. A menor coisa confusa, ou fora de ordem, ou que atrapalhe, a transforma num pequeno nó branco de fúria contida por um sorriso forçado. Ela anda com aquele mesmo sorriso de boneca, pregueado entre o queixo e o nariz, e aquele mesmo brilho calmo saindo dos olhos, mas bem lá dentro está tensa como aço. Eu sei, posso sentir. E ela não descontrai um fio de cabelo, até conseguir afastar o aborrecimento – tê-lo "ajustado ao meio-ambiente", como ela diz.

* Vassoura em inglês = broom, com a mesma pronúncia da primeira sílaba do nome Bromden. (N. do T.)