Lá pelo final da tarde, Zorrillo monta a cavalo e nós partimos na direção da Colômbia. Vou com um chapéu de palha. Controlo com firmeza as rédeas do cavalo. Todos os índios da tribo, sem exceção, cobrem o rosto com o braço esquerdo e estendem o braço direito na minha direção. Com o gesto, eles querem dizer que não me desejam ver partir, que gostariam de me reter com eles. Lali e Zoraima me acompanham durante uns 100 metros. Penso que elas vão me beijar, mas, de repente, com um grito, elas saem correndo na direção da nossa casa, sem olhar para trás.
5 VOLTA À CIVILIZAÇÃO
Sair do território da Guajira índia não é difícil e nós atravessamos sem trapalhadas os postos fronteiriços de La Vela. A cavalo, podíamos percorrer em dois dias o que me custou tanto tempo com Antonio. Porém, não só estes postos fronteiriços são extremamente perigosos, como também há uma faixa de 120 quilômetros até Rio Hacha, o povoado donde me evadi.
Com Zorrillo junto, fiz minha primeira experiência de conversação com um civil colombiano, numa espécie de albergue onde vendem bebida e comida. Não me saí mal e, conforme me diz Zorrillo, gaguejar fortemente ajuda muito a disfarçar o sotaque e a maneira de falar.
Saímos para Santa Marta. Zorrillo deve me deixar na metade do caminho e ir de volta esta manhã.
Zorrillo me deixou sozinho. Decidimos que ele levaria o cavalo. De fato, possuir um cavalo é ter um domicílio, pertencer a um povoado determinado e, então, correr o risco de ser obrigado a responder a perguntas aborrecidas: “Conhece fulano? Como se chama o prefeito? Que faz a senhora X? Quem é o dono do armazém?”
Não, é melhor que eu continue a pé, que viaje de caminhão ou de ônibus e, depois de Santa Marta, de trem. Devo ser para todo mundo um forastero nesta região, que trabalha num lugar qualquer e faz não se sabe o quê.
Zorrillo trocou para mim três moedas de ouro de 100 pesos e me deu 1 000 pesos. Um bom operário ganha de oito a dez pesos por dia; portanto, só com isto, já tenho dinheiro para me sustentar durante bastante tempo. Subi num caminhão que vai para muito perto de Santa Marta, um porto bem importante que fica a 120 quilômetros, mais ou menos, do lugar onde me deixou Zorrillo. O caminhão vai à procura de cabras ou de cabritos, sei lá.
A cada 6 ou 10 quilômetros há sempre um botequim. O chofer desce e me convida. Quem convida é ele, mas eu é que pago, e, de cada vez, ele bebe cinco ou seis copos de uma cachaça que arde como fogo. De minha parte, faço de conta que bebo um copo. Depois de percorridos uns 50 quilômetros, ele está bêbado pra burro. Ficou tão alto, que erra a direção e entra num caminho lamacento onde o caminhão se atola e donde não pode mais sair. O colombiano não se inquieta: deita-se no caminhão, atrás, e me diz para dormir na cabina. Não sei o que fazer. Ainda devem faltar uns 40 quilômetros até Santa Marta. Ficando com ele, evito ser interrogado pela gente que aparece e, apesar das numerosas paradas, vou mais depressa do que a pé.
Assim, ao amanhecer, resolvo dormir. O dia começou, são quase 7 horas. Chega uma carroça puxada por dois cavalos. O caminhão impede que ela passe. Alguém me acorda, acreditando que o chofer sou eu, uma vez que era eu quem estava na cabina. Gaguejando, finjo estar na situação do cara que, despertado, não sabe bem onde está.
O chofer acorda e discute com o carroceiro. Apesar de várias tentativas, não se consegue tirar o caminhão. Tem lama até os eixos, a coisa não tem jeito. Na carroça estão duas irmãs de caridade vestidas de preto, com suas toucas, e três meninas. Depois de muita discussão, os dois homens concordam em abrir uma clareira no cerrado para que a carroça, com uma roda na estrada e a outra na parte desmatada, atravesse este pedaço ruim de cerca de 20 metros.
Cada um com um machete (um facão para cortar cana-de-açúcar, instrumento que todos trazem quando viajam), os dois cortam tudo o que poderia atrapalhar, enquanto vou arrumando o mato cortado no caminho, para diminuir a altura e também para proteger a carroça, que se arrisca a afundar na lama. Depois de quase duas horas, a passagem ficou aberta. Foi então que as irmãs, depois de me agradecerem, me perguntam aonde eu vou. Digo: “Santa Marta”.
– Mas o senhor não está no caminho certo, é preciso ir para trás conosco. Levaremos o senhor para muito perto de Santa Marta. a 8 quilômetros.
Não tenho jeito de recusar, pareceria anormal. Por outro lado, gostaria de dizer que vou ficar com o chofer do caminhão para ajudá-lo mas, diante da dificuldade de falar tanta coisa, prefiro dizer: “Gracias; gracias”.
E aí estou na carroça, com as três meninas. As duas bondosas irmãs estão sentadas no banco com o carroceiro.
A gente começa a andar e, na verdade, viajamos bastante depressa ara percorrer os 5 ou 6 quilômetros feitos por engano com o caminhão Uma vez na estrada certa, vamos a bom passo e, por volta do meio-dia, paramos num albergue para comer. As três meninas e o carroceiro numa mesa e as duas boas irmãs e eu numa mesa vizinha. As freiras são jovens, de 25 a trinta anos. A pele muito branca. Uma é espanhola, a outra irlandesa.
– O senhor não é daqui, não é?
– Sim, sou de Barranquilla.
– Não, o senhor não é colombiano, seus cabelos são muito claros e sua pele está escura porque o senhor está queimado de sol. Donde vem?
– De Rio Hacha.
– Que fazia por lá?
– Eletricista.
– Ah! Tenho um amigo na companhia de eletricidade, chama-se Perez, é espanhol. Conhece-o?
– Sim.
– Isto me dá prazer.
No fim do almoço, elas se levantam para ir lavar as mãos e a irlandesa fica sozinha. Olha-me e, a seguir, diz em francês:
– Não trairei o senhor, mas minha companheira diz que viu sua fotografia num jornal. O senhor é o francês que fugiu da prisão de Rio Hacha, não é?
Negar seria pior ainda.
– Sim, irmã. Peço-lhe, não me denuncie. Não sou o homem mau que andam dizendo. Amo a Deus e o respeito.
A espanhola chega, a outra diz: “É ele, sim”. Ela responde muito depressa uma coisa que não entendo. Ficam com o ar de refletir, levantam-se e vão à privada de novo. Durante os cinco minutos da ausência delas, reajo rapidamente. Devo partir antes que voltem, devo ficar? Dá no mesmo, caso elas estejam pensando em me denunciar, porque, se dou o fora, me acharão muito depressa. Esta região não é uma “selva” muito espessa e os acessos aos caminhos que levam às cidades logo ficarão certamente vigiados. Vou me entregar ao destino que, até hoje, não foi mau comigo.
Elas voltam muito sorridentes e a irlandesa pergunta pelo meu nome.
– Enrique.
– Bem, Enrique, o senhor virá conosco até o convento para onde vamos, que fica a 8 quilômetros de Santa Marta. Conosco na carroça, o senhor nada tem a temer na estrada. Não fale, todo mundo acreditará que o senhor é um trabalhador do convento.
As irmãs pagam o almoço de todos. Compro um pacote de doze maços de cigarros e um isqueiro. Saímos. Durante todo o trajeto, as irmãs não me dirigem mais a palavra e eu lhes fico agradecido. Dessa maneira, o carroceiro não percebe que falo mal a língua do país. Lá pelo fim da tarde, paramos num albergue grande. Vejo um ônibus onde leio: “Rio Hacha-Santa Marta”. Tenho vontade de tomá-lo. Aproximo-me da irmã irlandesa e lhe falo da minha intenção de utilizar este ônibus.
– É muito perigoso – diz ela – porque, antes de chegar a Santa Marta, há, pelo menos, dois postos de polícia, onde exigem dos passageiros sua cédula (documento de identidade), o que não acontecerá com a carroça.
Agradeço a ela vivamente e, então, a angústia que passei a sentir depois que me reconheceram desaparece imediatamente. Foi, pelo contrário, uma sorte enorme para mim ter encontrado estas boas irmãs. Efetivamente, ao anoitecer, chegamos a um posto de polícia (em espanhol, alcabale). Um ônibus, que vinha de Santa Marta e ia para Rio Hacha, estava sendo inspecionado pela polícia. Estou deitado de costas na carroça, meu chapéu de palha em cima do rosto, fingindo dormir. Uma menina de uns oito anos tem a cabeça apoiada no meu ombro e dorme de verdade. Quando a carroça passa, o carroceiro pára seus cavalos justamente entre o ônibus e o posto.