– Monsenhor, aqui estão os franceses – diz em francês o chefe de polícia. – Tiveram conduta exemplar.
– Congratulo-me com vocês, meus filhos. Vamos sentar nos bancos em volta da mesa, aí estaremos melhor para conversar.
Todo mundo senta, inclusive os que acompanham o bispo. Trazem um tamborete que se encontrava diante da porta, no pátio, e o colocam na cabeceira da mesa. Desta maneira, o bispo poderá ver bem todos nós.
– Os franceses são quase todos católicos, qual de vocês não é?
Ninguém levanta a mão. Penso que o padre da Conciergerie quase me batizou e que posso me considerar católico, eu também.
– Meus amigos, eu sou descendente de franceses e me chamo Irénée de Bruyne. Meus antepassados eram protestantes huguenotes refugiados na Holanda, na época em que Catarina de Médicis os perseguia para matar. Sou, portanto, de sangue francês, bispo de Curaçau, cidade onde há mais protestantes que católicos, mas onde os católicos são todos crentes e praticantes. Em que situação vocês se acham?
– Estamos esperando para ser embarcados nos petroleiros, um por um.
– Quantos já partiram dessa maneira?
– Até agora, nenhum.
– Hum! Que diz a isso, comandante? Responda em francês, por favor, o senhor fala francês tão bem.
– Monsenhor, o governador, sinceramente, tem a idéia de ajudar esses homens empregando essa fórmula, mas devo dizer, com toda a sinceridade, que até hoje nenhum capitão de navio aceitou levar qualquer um deles, principalmente porque eles não têm passaporte.
– É por aí que devíamos começar. O governador não poderia dar a cada um deles um passaporte excepcional?
– Não sei. Nunca falou nisso.
– Depois de amanhã, vou rezar uma missa por vocês. Querem vir se confessar, amanhã à tarde? Eu os ouvirei pessoalmente, a fim de ajudá-los, para que o bom Deus perdoe os seus pecados. Será possível o senhor enviá-los à catedral às 3 horas?
– Sim.
– Gostaria que eles viessem de táxi ou em carro particular.
– Eu mesmo os acompanharei, monsenhor – diz o Dr. Naal.
– Obrigado, meu filho. Meus filhos, não posso lhes prometer nada. Apenas posso lhes dizer uma palavra verdadeira: a partir deste momento, vou me esforçar para lhes ser o mais útil possível.
Vendo que Naal lhe beija o anel e que o bretão faz o mesmo, nós também beijamos de leve o anel episcopal e o acompanhamos até o seu carro, estacionado no pátio.
No dia seguinte, todos se confessam com o bispo. Eu sou o último.
– Vamos, meu filho. Comece primeiro pelo maior pecado.
– Meu padre, em primeiro lugar não sou batizado, mas um padre da prisão na França me disse que, batizados ou não, somos todos filhos do bom Deus.
– Ele tinha razão. Pois bem, vamos sair do confessionário e você vai me contar tudo.
Conto a minha vida, com todos os episódios. Demorada e pacientemente, com a maior atenção, o príncipe da Igreja me escuta sem me interromper. Pega minhas mãos entre as suas e me fita muitas vezes nos olhos; às vezes, nas passagens difíceis de confessar, ele baixa os olhos para me ajudar. Esse padre de sessenta anos tem o olhar e o rosto tão puros, que refletem qualquer coisa de infantil. Sua alma límpida e certamente repleta de infinita bondade se irradia em todos os seus traços, e seu olhar cinza-claro penetra em mim como um bálsamo sobre uma ferida. Calmamente, muito devagar, sempre com as minhas mãos entre as suas, ele me fala numa voz tão suave que é quase um murmúrio:
– Deus concede às vezes aos seus filhos a graça de suportar a maldade humana, para que aquele que escolheu como vítima saia da prova mais forte e mais nobre do que nunca. Veja, meu filho, se você não tivesse tido esse calvário para subir, jamais poderia ter-se elevado tão alto e se aproximado tão intensamente da verdade de Deus. Digo melhor: as pessoas, os sistemas, as engrenagens dessa máquina horrível que esmagou você, os seres fundamentalmente maus que de várias maneiras torturaram e prejudicaram você prestaram-lhe o maior serviço que poderiam prestar. Provocaram em você o aparecimento de um novo ser, superior ao primeiro e, hoje, se você tem o sentido da honra, da bondade, da caridade e a energia necessária para vencer todos os obstáculos e tornar-se um indivíduo superior, deve tudo isso a eles. Essas idéias de vingança, de punir cada um proporcionalmente à importância do mal que lhe fez, não podem ir adiante numa criatura como você. Você deve ser um salvador de homens e não viver para fazer o mal, mesmo acreditando que isso seria justificado. Deus foi generoso com você, ele disse: “Ajuda-te, eu te ajudarei”. Ele ajudou você em tudo e até lhe permitiu salvar outros homens e levá-los à liberdade. Sobretudo, não creia que são muito graves todos esses pecados que você cometeu. Há muita gente de alta posição social que se tornou culpada de pecados bem mais graves que os seus. Só que eles não tiveram, no castigo imposto pela justiça dos homens, a oportunidade de elevar-se, como você o fez.
– Obrigado, padre. O senhor me fez um bem enorme, para toda a minha vida. Nunca hei de esquecer.
E lhe beijo as mãos.
– Você vai partir novamente, meu filho, e enfrentar outros perigos. Eu queria batizá-lo antes que partisse. Que acha?
– Padre, deixe-me ficar como estou, por enquanto. Meu pai me criou sem religião. Ele tem um coração de ouro. Quando minha mãe morreu, ele soube encontrar, para me amar ainda mais, gestos, palavras e atenções de mãe. Me parece que, se eu me deixasse batizar, estaria cometendo uma espécie de traição para com ele. Me deixe ficar completamente livre, com uma identidade estabelecida, um modo de viver normal e então, quando escrever a ele, perguntarei se posso, sem magoá-lo, abandonar a sua filosofia e me fazer batizar.
– Compreendo, meu filho, e tenho certeza de que Deus está com você. Dou-lhe a minha bênção e peço a Deus que o proteja.
– É assim. Dom Irénée de Bruyne se espelha por inteiro nesse sermão – me diz o Dr. Naal.
– Exatamente. E o que o senhor pensa fazer agora?
– Vou pedir ao governador que dê ordem à alfândega para que me conceda preferência na primeira venda de barcos apreendidos aos contrabandistas. Você virá comigo, para dar sua opinião e escolher aquele que mais lhe convém. Quanto ao resto, alimentos e roupas, será fácil.
Desde o dia do sermão do bispo, temos constantemente visitas, especialmente às 6 horas da tarde. Essa gente quer nos conhecer. Sentam-se nos bancos junto à mesa, cada um traz alguma coisa, que deposita discretamente sobre uma cama, sem mesmo dizer: “Olhem, eu trouxe isso para vocês”. Lá pelas 2 horas da tarde, sempre aparecem algumas Irmãzinhas dos Pobres, acompanhadas da superiora e falando muito bem o francês. A sua cesta está sempre cheia de boas coisas preparadas por elas. A superiora é ainda moça, menos de quarenta anos. Não se vêem seus cabelos, presos na coifa branca, mas ela tem os olhos azuis e as sobrancelhas loiras. Pertence a uma importante família e – segundo nos disse o Dr. Naal – escreveu para a Holanda, a fim de que se encontre outro meio que não seja o de nos obrigar a partir novamente pelo mar. Passamos juntos uns bons momentos e ela nos pede várias vezes para narrar a nossa evasão. Às vezes me pede para contar diretamente a umas freiras que a acompanham e que falam francês. E, se eu esqueço ou omito um detalhe, ela me chama docemente à ordem:
– Henri, não conte tão depressa. Você está pulando a história do hocco… E por que está esquecendo hoje as formigas? São muito importantes as formigas, pois foi por causa delas que você foi surpreendido pelo bretão mascarado.
Estou contando tudo isso porque são momentos tão doces, tão completamente opostos a tudo o que temos vivido, que uma luz celestial parece iluminar de modo irreal esse caminho da podridão, que está em vias de desaparecer.
Fui ver o barco, magnífica embarcação de 8 metros de comprimento, com uma bela quilha, um mastro muito alto e velas imensas. É realmente adequado para o contrabando. Está completamente equipado, mas todo lacrado pela alfândega. No leilão, um senhor começa com um lance de 6 000 florins, mais ou menos 1 000 dólares; mas o barco fica sendo nosso por 6 001 florins, depois que o Dr. Naal murmura algumas palavras ao ouvido daquele cavalheiro.