Billy abriu uma lata de cerveja para a garota, e ela o estimulou tanto com o seu sorriso alegre e o seu "obrigado, Billy", que ele começou a abrir latas para todo mundo.

Fiquei sentado ali, sentindo-me bem e à vontade, bebericando a cerveja; eu podia ouvir o líquido escorregando por dentro de mim – zzzt zzzt. Eu havia esquecido que existiam sons e gostos bons assim, como o som e o gosto da cerveja descendo. Tomei mais um gole e comecei a olhar em volta para ver o que mais eu havia esquecido em 20 anos.

– Cara! - disse McMurphy enquanto tirava a moça de trás do volante e a empurrava para junto de Billy. – Olhem só para o Grande Chefe derrubando essa pinga! – e meteu o carro a toda no meio do tráfego, com o médico guinchando pneus atrás para acompanhá-lo.

Ele nos mostrara o que se podia conseguir com um pouco de desafio e de coragem, e pensamos que nos havia ensinado como usá-los. Por todo caminho até a costa nos divertimos fingindo que éramos corajosos. Quando as pessoas ficavam olhando para nós e nossos uniformes verdes num sinal fechado, fazíamos igualzinho a ele, sentávamo-nos bem eretos, fortes e com aparência de gente durona, abríamos um grande sorriso e as encarávamos de volta até que os motores delas morriam, as janelas refletiam o sol, e elas ficavam sentadas ali, quando o sinal abria, muito perturbadas por causa daquele bando de macacos selvagens que ainda há pouco estava a menos de um metro de distância deles, com nenhum socorro à vista.

Enquanto isso, McMurphy nos conduzia, os 12, em direção ao oceano.

Eu acho que McMurphy sabia melhor do que nós que nossa aparência de durões era só encenação, porque ainda não conseguira obter uma risada verdadeira de ninguém Talvez não pudesse compreender por que ainda não éramos capazes de rir, mas sabia que ninguém é realmente forte se não sabe ver um lado engraçado nas coisas. De fato, ele se esforçava tanto para mostrar esse lado que eu me perguntava às vezes se talvez, ele não estava cego em relação ao outro, se ele não era, talvez, incapaz de ver o que era que ressecava o riso lá dentro, no fundo da gente. Talvez os outros também não fossem capazes de ver isso, apenas pudessem sentir as pressões das várias ondas e freqüências vindas de todas as direções, empurrando-o e dobrando-o para um lado ou para o outro, sentir a Liga funcionando – mas eu era capaz de ver isso.

A mesma maneira como a gente nota a mudança numa pessoa de quem se esteve afastado durante muito tempo, enquanto que os que a vêem diariamente, entra dia sai dia, não perceberiam, porque a mudança é gradual. Por todo o caminho em direção à costa eu podia ver sinais do que a Liga havia conseguido fazer desde que eu estivera por ali pela última vez, coisas como, por exemplo, um trem parando numa estação e despejando uma fileira de homens de ternos de um mesmo feitio e chapéus feitos em série; despejando-os como uma ninhada de insetos idênticos, coisas meio vivas saindo do último carro fazendo ft-ft-ft, então piando o seu assovio elétrico e seguindo pela terra estragada para despejar uma outra ninhada.

Ou coisas como 5 mil casas picotadas identicamente por uma máquina e espalhadas pelas colinas nos arredores da cidade, tão recentemente saídas da fábrica que ainda estão presas umas às outras como salsichas, com um cartaz dizendo: ANINHE-SE NAS CASAS DO OESTE – SEM ENTRADA PARA VETERANOS DE GUERRA, um playground no sopé da colina onde ficam as casas, atrás de uma cerca de arame xadrezado e um outro cartaz: ESCOLA SÃO LUCAS PARA OS MENINOS, onde 5 mil meninos de calças de veludo cotelê verde e camisas brancas sob suéteres verdes estão brincando de chicotinho num acre de terra coberta de cascalho. A fila saltava, torcia-se e contorcia-se como uma cobra, e cada estalo do chicote punha para fora do final da fila um garotinho, que ia rolando até bater contra a cerca como um galho seco levado pelo vento. E era sempre o mesmo garotinho, uma vez atrás da outra.

Todos aqueles 5 mil garotos moravam naquelas 5 mil casas, de propriedade daqueles que haviam saltado do trem. As casas eram tão parecidas que volta e meia os garotos se enganavam e iam para casas diferentes e para famílias diferentes. Ninguém nunca percebia. Eles comiam e iam para a cama. O único que eles percebiam era o garotinho do fim da fila. Ele sempre estava tão esfolado, tão machucado que pareceria deslocado aonde quer que fosse. Não era capaz de se descontrair e rir, tampouco. Rir é uma coisa difícil de fazer se se pode sentir a pressão daquelas ondas que vêm de cada carro novo que passa, ou de cada casa nova pela qual se passa.

– Podemos até ter um grupo de pressão em Washington – dizia Harding. – Uma organização: ANAPI. ( * ) Grupos de pressão. Grandes cartazes à beira da estrada, mostrando um esquizofrênico tatibitate dirigindo uma máquina de demolição, com letras coloridas, em tamanho grande: EMPREGUE OS INSANOS. Temos um futuro cor-de-rosa, cavalheiros.

Atravessamos uma ponte sobre o Siuslaw. Havia apenas neblina bastante no ar para que eu pudesse esticar a língua no vento e sentir o gosto do mar antes que pudéssemos vê-lo. Todo mundo sabia que já estávamos perto e não disseram uma palavra durante todo o caminho até o porto.

O comandante que deveria nos levar tinha uma cabeça careca que parecia de metal cinzento apoiada sobre uma gola roulée preta como uma torre de tiro de um submarino; o charuto apagado enfiado na boca nos passou em revista. Ele ficou ao lado de McMurphy no ancoradouro e olhou para o mar enquanto falava. Atrás dele e alguns degraus acima, seis ou oito homens metidos em casacos de couro se encontravam sentados num banco, diante da fachada da loja de iscas. O comandante falava alto, meio para os vadios de um lado, e meio para McMurphy, do outro lado, disparando voz metálica para algum lugar no meio.

– Não me importo. Disse-lhe especificamente na carta. Se você não tem um documento de liberação assinado, isentando-me com as autoridades competentes, eu não saio. – A cabeça redonda girou na torre do seu suéter, baixando o charuto em direção ao nosso grupo. – Olhe aí. Um bando desses no mar, poderia querer saltar sobre a amurada como ratazanas. Os parentes me processariam e me tomariam tudo que tenho. Não posso arriscar.

McMurphy explicou como a outra moça deveria ter apanhado todos aqueles papéis em Portland. Um dos caras encostados na loja de iscas gritou:

– Que garota? A lourinha aí não é capaz de dar conta de vocês todos? – McMurphy não lhe deu a mínima atenção e continuou discutindo com o comandante, mas podia-se ver como aquilo incomodava a garota. Os sujeitos junto da loja continuavam lançando olhares de soslaio para ela, inclinando-se e chegando mais perto uns dos outros para cochichar. Toda a nossa tripulação, inclusive o médico, notou isso e começou a se sentir envergonhada de não fazer alguma coisa. Não éramos aquele grupo atrevido que há pouco estivera lá no posto de gasolina.

McMurphy parou de discutir, quando viu que nada conseguia com o capitão, e virou-se umas duas vezes passando a mão pelo cabelo.

– Qual foi o barco que alugamos?

– É aquele ali. A Cotovia. Homem nenhum põe o pé dentro dele antes que eu tenha um documento assinado me isentando de responsabilidades. Homem nenhum.

– Eu não pretendo alugar um barco para que nós possamos nos sentar o dia inteiro e ficar vendo-o a balançar para cima e para baixo no ancoradouro – disse McMurphy. – Não tem um telefone ali na sua barraca de iscas? Vamos esclarecer esse negócio.

Subiram pesadamente os degraus que levavam à loja de iscas e entraram, deixando-nos agrupados ali sozinhos, com aquele bando de vadios lá em cima a nos observar, fazendo comentários, dando risadinhas e cutucando um ao outro nas costelas. O vento soprava sobre os barcos em suas amarras, fazendo-os bater contra os pneus de borracha molhados, presos ao longo do ancoradouro, de forma que faziam um ruído como se estivessem rindo de nós. A água gargalhava sob os barcos, e a placa pendurada sobre a porta da loja de iscas, que dizia: EQUIPAMENTOS MARÍTIMOS – PROPRIETÁRIO: CAPITÃO BLOCK, estava guinchando e rangendo ao vento que sacudia seus ganchos enferrujados. Os mexilhões agarrados nas estacas, elevando-se um metro acima da água, marcando a linha da maré, assoviavam e estalavam sob o sol. O vento se tornara frio e cortante, Billy Bibbit tirou o casaco verde e o deu à garota. Ela o vestiu sobre a camiseta fina. Um dos vadios continuava gritando:

– Ei, você, lourinha, gosta de garotos bobocas como esses? – Os lábios do homem estavam arroxeados e seu rosto era vermelho sob os olhos, onde o vento havia triturado as veias da superfície. – Ei, você, lourinha – ele continuava gritando repetidamente, numa voz alta e cansada: – ei, você, lourinha… ei, você, lourinha… ei, você, lourinha…

Nós nos agrupamos mais, por causa do vento.

– Diga-me, lourinha, por que é que você foi internada?

– Ahr, ela não foi internada, Perce, ela é parte do tratamento!

– É isso mesmo, lourinha? Você foi contratada como parte do tratamento? Ei, você, lourinha.

Ela levantou a cabeça e nos lançou um olhar que perguntava onde estava aquele grupo esquentado que ela vira, e por que não diziam alguma coisa para defendê-la? Ninguém respondeu ao olhar. Toda a nossa força desafiante havia subido aqueles degraus, com o braço passado em volta do ombro daquele capitão careca.

Ela levantou a gola da jaqueta, apertando-a em volta do pescoço, abraçou os cotovelos e saiu andando pelo ancoradouro para tão longe de nós quanto pôde. Ninguém foi atrás dela. Billy Bibbit tremeu de frio e mordeu o lábio. Os caras da loja de iscas cochicharam alguma outra coisa e se agitaram, dando risadas.

– Pergunte a ela, Perce… ande.

– Ei, lourinha, você conseguiu que assinasse um papel isentando você de responsabilidade junto às autoridades competentes? Estão me dizendo que os parentes poderiam processar, se um dos garotos caísse e se afogasse enquanto estivesse a bordo. Já pensou nisso? Talvez seja melhor você ficar aqui conosco, lourinha.

– É, lourinha, os meus parentes não processariam. Prometo. Fique aqui conosco, lourinha.

Tive a impressão de que podia sentir que meus pés ficavam molhados à medida que o ancoradouro afundava de vergonha na baía. Não estávamos em condições de estar ali fora com gente. Desejei que McMurphy voltasse, xingasse bastante aqueles sujeitos e então nos levasse de volta para o lugar onde devíamos estar.

* ANAPI – Associação Nacional de Auxilio a Pacientes insanos (N. do T.)