– Quero que se faça alguma coisa! Estão me ouvindo? Quero que se faça alguma coisa! Alguma coisa! Alguma…

Os dois crioulos maiores agarraram-lhe os braços por trás, e o menor lançou uma correia em volta dele. Ele desabou como se tivesse levado um tiro, e os dois grandes o arrastaram lá para cima, para a Enfermaria dos Perturbados; podia-se ouvir as batidas surdas do corpo dele subindo os degraus. Quando eles voltaram e se sentaram, a Chefona virou-se para a fileira de Agudos do outro lado da sala e olhou para eles. Nada havia sido dito desde que Cheswick saíra.

– Há mais alguma dúvida – disse ela – quanto ao racionamento de cigarros?

Olhando para a fileira de rostos sem vida, pendurados na parede do outro lado da sala, meus olhos finalmente encontraram McMurphy na sua cadeira no canto, concentrando-se em aprimorar o corte de baralho com uma só mão… e os tubos brancos no teto começam a bombear aquela luz refrigerada… posso sentir os raios vindo até o interior do meu estômago.

Depois que McMurphy deixou de nos defender, alguns dos Agudos discutem e dizem que ele ainda está passando a Chefona para trás, que ele foi avisado de que ela estava prestes a mandá-lo para a Enfermaria dos Perturbados e decidiu afrouxar um pouco o laço, não lhe dando motivos. Outros concluem que ele a está deixando descontrair-se e que vai aprontar alguma novidade para ela, algo ainda mais violento e mais maléfico. A gente pode ouvi-los a discutir em grupos, tentando adivinhar.

Mas eu, eu sei por qu ê. Eu o ouvi falar com o salva-vidas. Finalmente, ele está ficando esperto, isto é tudo. Da maneira como papai fez quando acabou percebendo que não podia derrotar aquele grupo da cidade, que queria que o Governo construísse a represa por causa do dinheiro e do trabalho que traria, e porque os livraria do nosso vilarejo: Deixar que aquela tribo de índios pescadores tirasse o fedor deles dali e pegasse os 200 mil dólares que o Governo lhes estava pagando e que fossem para um outro lugar qualquer com o dinheiro. Papai foi inteligente ao assinar os papéis, pois não havia nada a ganhar, tentando evitá-lo. O Governo o conseguiria de qualquer maneira, mais cedo ou mais tarde. Pelo menos assim a tribo receberia um bom pagamento. Foi a coisa mais inteligente, não por nenhuma daquelas outras razões que os Agudos estavam inventando. Ele não disse, mas eu sabia e repeti a mim mesmo que era a coisa mais inteligente a fazer. Repeti aquilo para mim mesmo uma porção de vezes: É seguro. É como se esconder. É a coisa mais inteligente a fazer, ninguém podia dizer o contrário. Eu sei o que ele está fazendo.

Então, uma manhã todos os Agudos também descobrem, sabem qual é o verdadeiro motivo de seu recuo e que as razões que eles tinham estado imaginando eram apenas mentiras para se enganarem a si próprios. Ele nunca disse algo sobre a conversa que teve com o salva-vidas, mas eles sabem. Imagino que a enfermeira tenha anunciado isso durante a noite, através de todas as linhas no chão do dormitório, porque eles souberam todos de uma vez. Posso ver pela maneira como olham para McMurphy naquela manhã, quando entra na enfermaria. Não como se estivessem zangados com ele, ou mesmo desapontados, porque eles podem compreender, da mesma forma que eu, que a única maneira que ele tem para conseguir que a Chefona suspenda sua internação é agindo como ela quer. Mas, ainda assim, todos olham para ele como se desejassem que as coisas não fossem daquele jeito.

Até Cheswick pôde entender isso e não guardou rancor contra McMurphy por não ter ido em frente e criado um caso por causa dos cigarros. Ele voltou da Enfermaria dos Perturbados no mesmo dia em que a enfermeira transmitiu a informação para as camas. Ele disse a McMurphy, ele mesmo, que compreendia sua atitude e que certamente era a coisa mais sensata a fazer, levando tudo em consideração, e que, se ele tivesse pensado no fato de que Mack havia sido internado judicialmente, nunca o teria posto em dificuldades como fizera no outro dia. Disse isso a McMurphy enquanto todos nós estávamos sendo levados para a piscina. Mas, assim que chegamos lá, ele acrescentou que, realmente, apesar de tudo, desejava que alguma coisa pudesse ter sido feita, e mergulhou na água. E de alguma forma prendeu os dedos na grade que fica em cima do buraco de escoamento no fundo da piscina, e nem o grande salva-vidas, nem McMurphy, nem os dois negros conseguiram soltá-lo. Quando providenciaram uma chave de fenda e soltaram a grade e trouxeram Cheswick para cima, com a grade ainda presa nos dedos gordos, azulados, ele já estava morto.

Lá na frente, adiante de mim na fila do almoço, vejo uma bandeja saltar no ar, uma nuvem de plástico verde chovendo leite, ervilhas e sopa de legumes. Sefelt está saindo agitadamente da fila, saltando num pé só, os braços erguidos no ar, cai para trás num arco rígido, e o branco de seus olhos surge ao meu lado, de cabeça para baixo. A cabeça dele bate no ladrilho com um ruído como o de rochas sob a água, e ele continua arqueado, como uma ponte, a contorcer-se, tremendo. Fredrickson e Scanlon saltam para ajudar, mas o crioulo grande os empurra para trás e arranca uma vareta achatada do bolso de trás, enrola uma fita na vareta, que fica coberta por uma mancha marrom. Ele abre a boca de Sefelt e enfia a vareta entre seus dentes, e ouço a vareta se partir com a mordida de Sefelt. Posso sentir o gosto das lascas. As convulsões de Sefelt diminuem, vão ficando mais fortes, aumentam mais ainda, provocam grandes saltos que o erguem numa ponte, para cair em seguida. Levanta e cai, cada vez mais devagar, até que a Chefona entra e fica de pé junto a ele e ele se desaba frouxamente por todo o chão numa poça acinzentada.

Ela une as mãos diante de si, só faltava estar segurando uma vela, olha para o que resta dele a se esvair pelas aberturas das calças e da camisa.

– Sr. Sefelt? – diz para o crioulo.

– Isso mesmo… uhn. – O crioulo está fazendo força para arrancar de volta a vareta. – Sr. See – felt.

– E o Sr. Sefelt me tem garantido que não precisa mais de nenhuma medicação. - Ela sacode a cabeça, recua um passo, saindo do caminho dele com seus impecáveis sapatos brancos. Levanta a cabeça e olha em volta para o círculo que se formou de Agudos que se aproximaram para ver. Torna a sacudir a cabeça e repete: -… não precisa mais de nenhuma medicação.

O rosto dela está sorridente, compassivo, paciente e triste, tudo de uma vez – uma expressão treinada. McMurphy nunca tinha visto uma coisa assim.

– Que é que há de errado com ele? – pergunta. Ela continua olhando para a poça, sem se virar para

McMurphy.

– O Sr. Sefelt é epilético, Sr. McMurphy. Isto significa que ele pode estar sujeito a ataques, como este, a qualquer momento, se não seguir a orientação médica. Ele acha que sabe muito. Nós o havíamos avisado de que isto aconteceria quando ele não quis tomar os remédios. Entretanto, ele insistiu em agir estupidamente.

Fredrickson sai da fila com as sobrancelhas eriçadas. Ele é um cara forte, pálido, de cabelo louro, sobrancelhas grossas e maxilar grande, e de vez em quando age com rudeza como Cheswick costumava fazer – grita, esbraveja e xinga uma das enfermeiras, diz que vai embora dessa porcaria desse lugar! Eles sempre o deixam berrar e sacudir o punho até que se acalme. Então, perguntam-lhe "já acabou, Sr. Fredrickson, então vamos começar a datilografar o relatório", e começam a apostar na Sala das Enfermeiras quanto tempo vai levar até que ele esteja batendo no vidro com uma expressão culpada, pedindo desculpas e que tal esquecer aquelas coisas que ele disse de cabeça quente, e esconder esses velhos formulários por um dia ou dois?

Ele se aproxima da enfermeira brandindo o punho contra ela.

– Ah, é assim? É assim, hem? Vai crucificar o Seef como se ele estivesse fazendo isso para ofendê-la?

Ela põe uma mão confortadora no braço dele, e o punho se abre.

– Está tudo certo, Bruce. Seu amigo vai ficar bom. Ao que parece ele não tem tomado o Dilantin. Eu simplesmente não sei o que ele tem feito com os comprimidos.

Ela sabe tão bem como todo mundo; Sefelt fica com os comprimidos na boca e depois os dá a Fredrickson. Sefelt não gosta de tomá-los por causa do que ele chama "efeitos colaterais nocivos", e Fredrickson gosta de uma dose dupla porque tem um pavor mortal de ter um ataque. A enfermeira sabe disso, pode-se perceber pela sua voz, mas olhando para ela ali, tão simpática e gentil, poder-se-ia pensar que ignorava qualquer combinação entre Fredrickson e Sefelt.

– Siimm – diz Fredrickson, mas ele não consegue reativar o seu ataque. – Sim, bem, não precisa agir como se fosse simplesmente um caso de tomar o negócio ou não. A senhora sabe como Seef se preocupa com a aparência pessoal e como as mulheres vão pensar que ele é feio, e tudo isso, e sabe que ele acha que o Dilantin…

– Eu sei – diz ela e toca novamente o braço dele. – Ele também culpa a droga pela queda de cabelo. Pobre velho diabo.

– Ele não é tão velho assim!

– Eu sei, Bruce. Por que é que fica tão aborrecido? Eu nunca compreendi o que é que há entre você e o seu companheiro que o faz ficar tão na defensiva!

– Ora bolas! – diz ele e enfia os punhos nos bolsos. A enfermeira se abaixa e limpa um lugarzinho no chão.

Ajoelha-se nele e começa a tornar a dar alguma forma a Sefelt. Diz ao crioulo para ficar com o coitado do sujeito que ela vai mandar uma cama Gurney para ele; para depois levá-lo para o dormitório e deixá-lo dormir o resto do dia. Quando ela se levanta, dá uma palmadinha no braço de Fredrickson, e ele resmunga:

– É, eu também tenho de tomar Dilantin, sabe. É por isso que eu sei o que Seef tem de enfrentar. Quero dizer, é por isso que eu… ora bolas…

– Eu compreendo, Bruce, o que vocês dois devem ter de passar, mas você não acha que qualquer coisa é melhor do que isso?

Fredrickson olha para onde ela aponta. Sefelt está voltando mais ou menos ao normal, inchando e encolhendo numa respiração ofegante e úmida. Há um galo no lado de sua cabeça onde bateu no chão, e uma espuma vermelha em volta da vareta, no ponto em que ela entrou em sua boca, e os olhos estão começando a voltar ao branco. As mãos dele continuam estendidas para os lados, com as palmas viradas para cima, abrindo-se e fechando-se convulsivamente do mesmo jeito como eu vi os homens terem convulsões no Tratamento de Choque, amarrados na mesa em forma de cruz, a fumaça da corrente subindo das mãos. Sefelt e Fredrickson nunca foram submetidos ao Tratamento de Choque. Eles foram feitos para gerar a sua própria voltagem, armazená-la na coluna vertebral, e pode ser ligada por controle remoto do painel de aço da Sala das Enfermeiras, se saírem da linha – podem estar bem no meio de uma piada suja e se contraem como se o choque os atingisse num ponto das costas. Poupa o trabalho de se ter de os levar para aquela sala.