O índio que pesca com Lali se feriu no joelho, um ferimento grande e profundo. Os outros o levaram ao feiticeiro e ele voltou com um emplastro de argila branco. Nessa manhã, portanto, tive de ir pescar com Lali. Entramos na água com o barco da maneira usual e nos saímos bem. Levei-a um pouco mais longe do que costumava. Ela está radiante de me ver ali, com ela, na canoa. Antes de mergulhar, passa óleo no corpo. Imagino que no fundo negro do mar, que estou observando, a água deve ser um bocado fria. Três barbatanas de tubarão passam bastante perto de nós, eu as aponto, mas ela não lhes dá nenhuma importância. São 10 horas da manhã, o sol brilha. Com a sacola presa ao braço esquerdo, com o facão embainhado preso à cintura, ela mergulha; e, ao mergulhar, não empurra a canoa com os pés, como faria normalmente outra pessoa qualquer. Com incrível rapidez, desaparece no fundo escuro da água. Seu primeiro mergulho deve ter sido de exploração, pois a sacola volta com poucas ostras. Vem-me uma idéia. A bordo há um rolo de corda de couro. Amarro a ponta na sacola, entrego-a a Lali e desenrolo a corda na medida em que Lali vai descendo, levando a sacola e a corda. Ela deve ter compreendido a manobra, pois retorna sem a sacola, após um demorado mergulho. Segura ao barco para descansar, ela me faz sinal para puxar a sacola. Puxo-a, mas, num dado momento, ela parece ter ficado presa em algum coral. Ela mergulha e a desprende, de modo que a sacola acaba chegando, cheia pela metade. Esvazio-a no barco. Em oito mergulhos de 15 metros, nessa manhã, a canoa fica quase cheia. Quando Lali sobe, ficam faltando só dois dedos para que a água entre no bote. Ele está tão cheio de ostras, que, quando vou puxar a âncora, verifico que corremos o risco de afundar. Então deixamos a âncora presa pela corda a um remo, que fica flutuando e assinalando o lugar para voltarmos. Chegamos à terra sem incidentes.
A velha nos espera e o índio que acompanha Lali está na areia seca, no lugar onde, após a pesca, eles costumam abrir as ostras. Está contente com o fato de nós termos trazido tantas ostras. Lali parece explicar-lhe o que eu fiz, amarrando a sacola na corda, aliviando-lhe o esforço da subida e permitindo que ela ponha mais ostras dentro dela. Ele examina o nó que eu dei na corda para prendê-la ao saco. Experimenta desfazê-lo e, logo na primeira tentativa, consegue refazê-lo com muita perícia. Então me olha, muito orgulhoso.
Abrindo as ostras, a velha encontra treze pérolas. Lali, que habitualmente não fica nunca para essa operação e espera em casa que lhe levem a parte dela, permaneceu até que abrissem a última ostra- Comi pelo menos três dúzias. Lali comeu cinco ou seis. A velha separa as pérolas, que são mais ou menos do mesmo tamanho, do tamanho de urna ervilha. Três pérolas para o chefe, três para mim, duas para a velha, cinco para Lali. Lali recebe as três pérolas que me cabem e as entrega a mim. Eu as recebo e as entrego ao índio machucado. Ele não quer recebê-las, mas eu lhe abro a mão, ponho as pérolas dentro dela e torno a fechá-la. Então aceita. Sua mulher e sua filha observam a cena um tanto afastadas do nosso grupo e estavam em silêncio, mas agora começam a rir e se aproximam. Ajudo o pescador a se deslocar até a cabana dele.
Esta cena se repete durante cerca de duas semanas. Todos os dias, entrego as pérolas ao pescador. Ontem, das seis que nos couberam, guardei uma. Chegando em casa, obriguei Lali a comê-la. Ela ficou touquinha de alegria e cantou a tarde toda. De vez em quando, vou ver o índio branco. Ele me disse que se chama Zorrillo, que em espanhol quer dizer raposinha. Falou que o chefe lhe pedira para me Perguntar por que eu não fazia a tatuagem do focinho de tigre que fora pedida. Expliquei-lhe que não sei desenhar bem. Com a ajuda do dicionário, peço-lhe para me trazer um espelho retangular com a superfície do meu peito, papel transparente, um pincel fino, um tinteiro e papel-carbono (ou, se ele não o encontrar, um crayon grande e grosso). Digo-lhe também para trazer roupas do meu tamanho e guardá-las na casa dele com três camisas cáquis. Fico sabendo que a polícia lhe fez perguntas sobre Antonio e sobre mim. Ele lhes respondeu que eu tinha passado para a Venezuela pelas montanhas e que Antonio tinha sido mordido por uma cobra e estava morto. Disse-me também que os franceses estão na prisão em Santa Marta.
Na casa de Zorrillo há exatamente as mesmas coisas heterogêneas que na casa do chefe: muitos vasos decorados com desenhos de que os índios gostam, cerâmicas de muita arte, tanto pelo formato como pelos desenhos e pelas cores; redes de pura lã, magníficas, umas brancas, outras coloridas, com franjas; couros curtidos de cobras, lagartos e enormes sapos; cestos trançados, brancos e em cores. Segundo ele me falou, todos esses objetos são feitos por índios da mesma raça dos da minha tribo, mas que vivem em uma região de vegetação espessa, a 25 dias de viagem a pé, na direção do interior. Desse lugar é que vêm as folhas de coca e ele me dá mais de vinte delas. Quando estiver deprimido, mastigarei uma. Despeço-me de Zorrillo, pedindo-lhe que, além de todos os meus pedidos anotados, me trouxesse alguns jornais ou revistas em espanhol, pois com meu dicionário consegui aprender bastante em dois meses. Não há notícias de Antonio; ele sabe apenas que houve um novo choque entre guardas-costeiros e contrabandistas. Cinco guardas e um contrabandista morreram, o barco não foi capturado. Jamais vi na aldeia uma gota sequer de álcool, a não ser a bebida fermentada que é preparada com frutas. Enxergando uma garrafa de anis, peço-a, mas ele recusa. Se quiser, posso bebê-la aqui, mas não posso levá-la. Esse albino é um sábio.
Deixo Zorrillo e me vou em um burrico que ele me emprestou e que amanhã voltará sozinho à sua casa. Levo apenas um pacote de bombons de várias cores, enrolados um por um em papel fino, e sessenta maços de cigarro. Lali está me esperando a mais de 3 quilômetros da aldeia, com a irmã; ela não faz nenhuma cena e concorda em vir andando ao meu lado, abraçada. De vez em quando, ela pára e me beija à maneira civilizada, na boca. Quando chegamos, vou ver o chefe e lhe ofereço os bombons e os cigarros. Sentamos à porta, diante do mar. Tomamos a bebida fermentada, que, para ficar fresca, é guardada em moringas. Lali se senta à minha direita, com os braços em volta da minha coxa; sua irmã se senta à minha esquerda, na mesma posição. Elas comem os bombons. O pacote fica aberto diante de nós e as mulheres e as crianças se servem com discrição. O chefe empurra a cabeça de Zoraima para perto da minha e me faz compreender que ela quer ser minha mulher, como Lali. Lali faz gestos, segura seus próprios seios com as mãos e depois mostra que Zoraima tem seios pequenos e que é por isso que não a quero. Levanto os ombros e todo mundo ri. Percebo que Zoraima parece muito infeliz. Seguro-a nos meus braços e então envolvo seu pescoço e lhe acaricio os seios; ela fica radiante de felicidade. Fumo alguns cigarros; os índios experimentam e logo os rejeitam, preferem o cigarro deles, com a brasa dentro da boca. Cumprimento todos e pego Lali pelo braço para ir embora. Lali vem atrás de mim e Zoraima a segue. Peixes grandes estão sendo assados na brasa, é sempre uma delícia. Coloquei no fogo uma lagosta de pelo menos 2 quilos. Comemos com prazer essa carne delicada.
Recebi o espelho, o papel fino, o papel para decalcar, um tubo de cola que eu não tinha pedido, mas pode vir a ser útil, vários crayons grandes meio duros, o tinteiro e o pincel. Penduro o espelho em um fio, deixando-o à altura do meu peito, ficando eu sentado. No espelho aparece claramente, com todos os pormenores e do mesmo tamanho, a cabeça do tigre. Lali e Zoraima, curiosas e interessadas, me observam. Faço os traços com o pincel; como a tinta escorre, uso a cola, misturando-a com a tinta e, a partir de então, vai tudo bem. Depois de três sessões de uma hora de trabalho cada, consigo ter no espelho a réplica perfeita da cabeça do tigre.