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– Está aí – digo, mostrando para ele a tigela. Ele desgruda O dedo e joga-o no fogo; devolve a tigela e diz:

– Pode beber, eu tenho a lepra seca. Vou acabando aos pedaços, mas não apodreço, não sou contagioso.

Um cheiro de carne grelhada chega até mim. Raciocino comigo mesmo: “Isso deve ser aquele dedo”. Toussaint diz:

– Vai ter que passar o dia todo aqui, até a noite, quando vier a vazante. Você precisa avisar seus amigos. Traga o ferido para dentro de uma palhoça, tirem tudo o que tiver dentro da canoa e deixe que vá. Nenhum de nós pode ajudá-los, você compreende por quê.

Rapidamente vou até os outros dois, pegamos Clousiot e depois o levamos até uma palhoça. Uma hora depois, já tiramos tudo e o material da canoa está cuidadosamente arrumado. La Puce pede que lhe dê de presente a canoa com um remo. Dou e ele vai levá-la até um lugar que conhece. A noite passou depressa. Estamos os três dentro da palhoça, deitados em cima de cobertas novas que Toussaint mandou. Chegaram embrulhadas num papel forte de embalagem. Esticado em cima dessas cobertas, conto a Clousiot e a Maturette os detalhes daquilo que se passou depois da minha chegada na ilha e do negócio concluído com Toussaint. Clousiot fala uma coisa besta, sem refletir:

– A fuga custa então 6 500 francos. Vou dar a metade, Papillon, isto é, os 3 000 francos que tenho.

– Não estamos aqui para fazer contas de mascate. Enquanto tiver dinheiro, eu pago. Depois, a gente vê.

Nenhum leproso entra na palhoça. Amanhece, Toussaint chega:

– Bom dia. Podem sair sossegados. Aqui, ninguém vem incomodar. Em cima de um coqueiro, no alto da ilha, tem um sujeito para ver se há embarcações de guardas no rio. Não se vê nada. Enquanto o trapo branco ficar agitando é porque não tem nada à vista. Se ele vê alguma coisa, desce para dizer. Podem pegar uns mamões e comer, se quiserem.

– Toussaint, e a quilha? – digo eu.

– Vamos fazer a quilha com uma tábua da porta da enfermaria. É madeira pesada. Com duas tábuas, podemos fazer a quilha. Já carregamos o barco até o alto, aproveitando a noite. Venha ver.

Vamos. É um barco magnífico de 5 metros de comprimento, novo em folha, dois assentos, um deles furado para deixar passar o mastro. É pesado e eu e Maturette custamos para virá-lo. A vela e as cordas são novas. Do lado, estão pregados umas argolas, para amarrar a carga e o tonel da água. Começamos a trabalhar. Ao meio-dia, uma quilha, que se vai alinhando da parte traseira até a frente, é solidamente fixada com porcas largas e os quatro parafusos que eu tinha.

Em círculo, à volta da gente, os leprosos nos olham trabalhar sem dizer uma palavra. Toussaint diz como se deve fazer e nós obedecemos. Nenhuma chaga existe no rosto de Toussaint, que parece normal; mas, quando ele fala, percebe-se que só um lado do rosto se mexe, o esquerdo. Ele me falou que também sofre de lepra seca. Seu peito e seu braço direito estão igualmente paralisados e ele sabe que daqui a pouco a perna direita vai ficar paralisada. O olho direito é fixo como um olho de vidro, enxerga mas não se mexe. Não dou aqui o nome de nenhum dos leprosos. Talvez nunca aqueles que os amaram ou conheceram cheguem a saber de que maneira horrível eles ficaram se decompondo ainda vivos.

Sempre trabalhando, converso com Toussaint. Ninguém mais fala. Só uma vez, quando ia buscar algumas dobradiças que eles tinham arrancado de um móvel da enfermaria para reforçar o assentamento da quilha, um deles disse:

– Não pegue nelas ainda, deixe onde estão. Eu me cortei arrancando uma e tem sangue; o sangue ficou, por mais que eu tenha enxugado.

Um leproso derramou um pouco de rum em cima e botou fogo duas vezes.

– Agora – disse o homem -, você pode usá-las.

Enquanto trabalhamos, Toussaint diz a um leproso:

– Você, que fugiu muitas vezes, explique bem a Papillon como é que precisa fazer, porque nenhum dos três tem experiência.

Imediatamente ele explica:

– Daqui a pouquinho vai anoitecer e virá o refluxo. A maré vazante começa às 3 horas. Assim que escurecer, lá pelas 6 horas, você tem pela frente uma correnteza muito forte que vai levar você em menos de três horas a uns 100 quilômetros da embocadura. Quando você tiver que parar, serão 9 horas. Vai ter que esperar, bem amarrado a uma árvore da floresta, as seis horas da montante, até as 3 da manhã. Não saia a essa hora, porque a correnteza não cessa logo. Siga pelo meio do rio, às 4 e meia da manhã. Você tem uma hora e meia antes do amanhecer para fazer 50 quilômetros. Essa hora e meia é toda a chance que você tem. Às 6 horas, ao amanhecer, você precisa entrar no mar. Mesmo que os guardas vejam você, não podem persegui-lo, porque chegariam na barra da embocadura justo quando começa a montante. Eles não vão poder passar e você já terá passado a barra. Desse quilômetro de vantagem que você precisará ter quando eles o enxergarem é que vai depender sua vida. Aqui só há uma vela, o que é que você tinha na canoa?

– Uma vela e um cutelo.

– Este barco é pesado, pode agüentar dois cutelos: um a traquete, da ponta do barco à parte de baixo do mastro; o outro enfunado, saindo para fora da ponta da embarcação, para poder levantar bem a proa. Solte todas as velas, direto em cima das ondas do mar, que está sempre agitado no estuário. Mande seus amigos se deitarem no fundo do barco, para dar maior estabilidade, e segure firme o leme na mão. Não amarre a corda que segura a vela na sua perna, enfie-a na argola que existe para isso dentro do barco e prenda-a no seu pulso com uma volta só. Quando notar que a torça do vento está formando um vagalhão e você poderá cair na água, com risco de virar, solte tudo e imediatamente verá que seu barco vai readquirir equilíbrio. Se acontecer isso, não pare, deixe a vela esvoaçar e vá sempre para a frente a todo pano, com o traquete e o cutelo. Só em alto-mar você vai ter tempo de descer a vela pelo pequeno, trazê-la a bordo e partir de novo, depois de tornar a colocá-la. Você conhece a rota?

– Não. Sei somente que a Venezuela e a Colômbia ficam a noroeste.

– É isso, mas cuidado para não se deixar atirar na costa. A Guiana Holandesa, em frente, devolve os fugitivos; a Guiana Inglesa também. Trinidad não devolve, mas obriga-os a ir embora depois de quinze dias. A Venezuela devolve, depois de obrigar a gente a trabalhar nas estradas por um ano ou dois.

Escuto com os ouvidos bem atentos. Ele diz que foge de tempos em tempos, mas, como é leproso, é mandado de volta imediatamente. Confessa que nunca foi mais longe do que a Guiana Inglesa, Georgetown. Só tem lepra visível nos pés, onde todos os dedos desapareceram. Está descalço. Toussaint pede para eu repetir todos os conselhos que acabaram de me dar e eu repito sem me enganar. Nessa hora, Jean Sans Peur diz:

– Quanto tempo ele vai levar em alto-mar?

Respondo logo, antes de qualquer outra pessoa:

– Vou fazer três dias nor-nordeste. Com a deriva, norte-norte e no quarto dia vou tocar para noroeste, que vai dar oeste pleno.

– Ótimo – diz o leproso. – Eu, a última vez, só fiz dois dias para nordeste; assim, fui cair na Guiana Inglesa. Com três dias para norte, você vai passar ao norte de Trinidad ou de Barbados, e de uma vez só você passará a Venezuela sem perceber; vai dar em cima de Curaçau ou na Colômbia.

Jean Sans Peur diz:

– Toussaint, por quanto você vendeu o barco?

– Três mil – diz Toussaint. – É caro?

– Não, não estou falando por causa disso. Para saber, só. Você pode pagar, Papillon?

– Posso.

– Vai sobrar algum dinheiro para vocês?

– Não, é tudo o que temos, exatamente 3 000, que são do meu amigo Clousiot.

– Toussaint, dou meu revólver para você – diz Jean Sans Peur.

– Vou ajudar esses caras. Por quanto você fica com o revólver?

– Mil francos – diz Toussaint. – Eu também quero ajudá-los.

– Obrigado por tudo – diz Maturette a- Jean Sans Peur.