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É amanhã às 7 horas que vou poder sair em plena liberdade, na companhia de Picolino. Uma onda de calor invade meu coração; finalmente, deixei para sempre o caminho da podridão. Estamos em agosto de 1944. Há treze anos que estou esperando este dia.

Quis ficar sozinho na minha casinha da horta. Pedi desculpas aos meus companheiros, preciso estar só. A emoção é muito forte e muito bela para que eu a possa mostrar aos outros. Viro e reviro nas mãos a carteira de identidade que me foi entregue pelo diretor: minha fotografia no canto esquerdo, em cima o número 1 728 629, emitida em 3 de julho de 1944. Bem no centro, meu sobrenome; embaixo, meu nome de batismo. Atrás, a data do nascimento, 16 de novembro de 1906. O documento de identidade está perfeitamente em ordem; está mesmo assinada e carimbada pelo diretor da Identificação. Minha situação na Venezuela: “Residente”. É formidável, essa palavra “residente” significa que sou domiciliado na Venezuela. Meu coração bate descontroladamente. Gostaria de me pôr de joelhos e agradecer a Deus, mas não sei rezar e não fui batizado. A que Deus vou me dirigir se não pertenço a nenhuma religião? Ao bom Deus dos católicos? dos protestantes? dos judeus? dos muçulmanos? Qual deles vou escolher para lhe dedicar a oração que vou ser obrigado a inventar em todas as palavras, já que não sei nenhuma oração completa? Mas por que procuro hoje o Deus a quem me dirigir? Pois em toda a minha vida, quando o chamei ou o amaldiçoei, não pensei nesse Deus menino Jesus em sua manjedoura, ao lado do boi e do burro? Será que no meu subconsciente ainda guardo rancor às boas freiras da Colômbia? E. então, por que não pensar somente no único, no sublime bispo de Curaçau, Dom Irénée de Bruyne, ou, ainda mais longe, no bom padre da Conciergerie?

Amanhã estarei livre, completamente livre. Dentro de cinco anos serei venezuelano naturalizado, pois estou certo de não cometer nenhuma falta nesta terra que me deu asilo e me renovou a confiança. Preciso ser, na vida, duas vezes mais honesto que qualquer um.

De fato, se sou inocente do homicídio de que me acusaram, e pelo qual um promotor, alguns tiras e doze jurados cretinos me despacharam para os duros, isto só pôde acontecer porque eu era um vagabundo, um marginal. Foi porque eu era um aventureiro que puderam facilmente tecer em torno de mim aquele amontoado de mentiras. Abrir os cofres dos outros não é profissão muito recomendável e a sociedade tem o direito e o dever de se defender. Se fui lançado, finalmente, no caminho da podridão foi porque, devo reconhecê-lo honestamente, eu era candidato permanente a ser para lá enviado algum dia. Se o castigo não foi digno de um país como a França, se uma sociedade tem o dever de se defender, mas não de se vingar tão sordidamente, isso é outra questão. Meu passado não pode ser apagado com uma simples esfregadela de esponja, preciso me reabilitar aos meus próprios olhos e, a seguir, aos olhos dos outros. Agradeça portanto, Papi, ao bom Deus dos católicos, prometa-lhe fazer algo muito importante.

– Meu Deus, perdoe se não sei rezar, mas olhe dentro de mim e verá que não tenho palavras bastantes para expressar minha gratidão por você ter me conduzido até aqui. A luta foi dura, a subida desse calvário que me foi imposto pelos homens não foi fácil e, por certo, se consegui ultrapassar todos os obstáculos e continuar a viver com saúde até este dia bendito, foi porque você tinha a mão sobre mim para me ajudar e proteger. Que posso fazer para provar que estou sinceramente agradecido pela sua bondade?

– Renunciar à vingança.

Será que ouvi, ou pensei ter ouvido essa frase? Não sei, mas ela me atingiu tão brutalmente (como se fosse uma bofetada), que quase acredito que a escutei realmente.

– Oh, não! Isso não! Não me peça isso. Essa gente me fez sofrer demais. Como é que você quer que eu perdoe os tiras corruptos, a falsa testemunha, Polein? Como vou desistir de arrancar a língua do promotor desumano? Não é possível. Você está pedindo muita coisa. Não, não e não! Sinto muito contrariá-lo, mas por preço nenhum deixarei de executar minha vingança.

Saio, tenho medo de fraquejar, não quero abdicar. Dou alguns passos na minha horta. Totó está arranjando as hastes de feijão para que subam e se enrolem nas estacas. Os três se aproximam de mim: Totó, o parisiense esperançoso das “bocas do lixo” da Rua de Lappe, Antartaglia, batedor de carteira, nascido na Córsega, mas que durante muitos anos “aliviou” os bolsos dos parisienses, e Deplanque, natural de Dijon, que matou um cafetão seu colega. Olham para mim, seus rostos mostram alegria pela minha liberdade. Logo será a vez deles, decerto.

– Você não trouxe da aldeia uma garrafa de vinho ou de rum para festejar a partida?

– Me desculpem, mas eu estava tão emocionado, que nem pensei nisso. Me perdoem o esquecimento.

– Mas não, nada temos a perdoar, vou fazer um bom café – diz Totó.

– Você está contente, Papi, porque você está definitivamente livre depois de tantos anos de luta. Estamos felizes por você.

– Espero que logo chegará a vez de vocês.

– Certo – diz Totó -, o capitão me disse que a cada quinze dias vai sair um de nós. O que vai fazer quando estiver em liberdade?

Hesitei um ou dois segundos, mas, corajosamente, embora receando parecer um pouco ridículo diante desse degredado e dos dois duros, respondi:

– O que vou fazer? Ora, não é complicado: vou começar a trabalhar e hei de ser sempre honesto. Neste país que me abriu um crédito de confiança, eu teria vergonha de cometer um delito.

Em vez de uma resposta irônica, fico surpreendido, porque todos os três dizem, quase ao mesmo tempo:

– Eu também decidi viver corretamente. Você tem razão, Papillon, vai ser duro, mas vale a pena e esses venezuelanos merecem o nosso respeito.

Não acredito no que ouço. Totó, o malandro do submundo do bairro da Bastilha, agora com essas idéias? É realmente assombroso! E Antartaglia, que viveu toda a vida esvaziando os bolsos dos outros, falando desse jeito? É maravilhoso. E Deplanque, cafetão inveterado, renunciando aos seus projetos de achar uma mulher para explorá-la? Isso é ainda mais espantoso. Todos começamos a rir juntos.

– Puxa! Esta história então vale ouro e, se você voltar amanhã a Montmartre, aparecer na Place Blanche, e contar ao pessoal, ninguém vai acreditar!

– Os homens da nossa laia vão acreditar, sim. Eles compreenderiam, meu chapa. Os que não podem admitir isso são os burgueses decadentes. A grande maioria dos franceses deformados não admite que uma pessoa possa, com o passado que temos, se transformar num homem de bem em todos os sentidos. Aí está a diferença entre o povo venezuelano e o nosso. Eu lhes contei a opinião daquele sujeito de Irapa, um pobre pescador, explicando ao chefe civil que um homem nunca está perdido para sempre, que é preciso lhe dar uma chance e ajudá-lo para que se transforme em pessoa honesta. Esses pescadores quase analfabetos do golfo de Paria, no fim do mundo, perdidos no imenso estuário do Orinoco, têm uma filosofia humanista que falta a muitos dos nossos concidadãos. Excesso de progresso mecânico, vida agitada, sociedade que só tem um ideal: novas invenções mecânicas, vida sempre mais fácil e melhor. Saborear as descobertas da ciência como se lambe um sorvete é coisa que provoca uma sede de conforto ainda maior e o desejo de lutar constantemente para o conseguir. Tudo isso mata a alma, destrói a compaixão, a solidariedade, a compreensão e a nobreza. Não há tempo para cuidar dos outros, e muito menos dos que já sofreram alguma condenação. Até mesmo as autoridades deste sertão são diferentes das nossas, pois elas são responsáveis pelo sossego público e, apesar disso, se arriscam a graves aborrecimentos, só por estarem convencidas de que vale a pena arriscar um pouco para salvar um homem. E isso é uma coisa magnífica.

Ganhei um belo terno azul-marinho, oferecido pelo meu aluno, hoje coronel. Ele partiu faz um mês para a escola de oficiais, classificado entre os três primeiros no concurso. Estou satisfeito em ter contribuído para o seu sucesso, com as aulas que lhe dei. Antes de partir, ele me ofereceu roupas quase novas que me vão muito bem. Vou sair decentemente vestido graças a ele, Francisco Bolagno, cabo da guarda nacional, casado e pai de família.