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– Temos certeza de sermos bem tratados – diz Guittou.

– Sim, mas que decisão vão tomar por termos deixado, em tempo de guerra, seu território sem autorização e clandestinamente?

– E a Venezuela?

– Não sabemos como é por lá – diz Deplanque. – Na época do Presidente Gómez, os forçados eram obrigados a trabalhar nas estradas em condições extremamente penosas, depois eram devolvidos à França.

– Sim, mas agora não é assim. Estamos em guerra.

– Eles, segundo o que ouvi dizer em Georgetown, não estão em guerra, são neutros.

– Tem certeza?

– Tenho.

– Então é perigoso para nós.

Distinguimos luzes na terra da direita e também na da esquerda. Mais uma vez a sirena, que desta vez dá três uivos em seguida. Sinais luminosos aparecem na costa da direita. A lua acaba de sair, está bastante longe de nós, mas em nossa trajetória. Em frente, dois imensos rochedos negros e pontudos emergem do mar, muito altos. Deve ser esse o motivo da sirena: avisam-nos de que é perigoso.

– Olhe, bóias flutuantes! Há uma porção delas. Por que não esperamos o dia agarrados a uma delas? Baixe a vela, Chapar.

Ele desce imediatamente aqueles trapos de calças e camisas que pretensiosamente eu chamo de vela. Contendo o barco com o remo, amarro a uma das bóias a ponta da embarcação que, felizmente, ficou com um bom pedaço de corda pendurado no gancho, um pedaço que o tufão não conseguiu arrancar. Pronto, estamos amarrados. Não diretamente nessa estranha bóia, porque ela não tem nada em que possa ser amarrada a corda, mas ao cabo que a liga a outra bóia. Estamos bem amarrados ao cabo dessa delimitação de um canal, sem dúvida. Sem nos preocuparmos com os uivos que a costa da direita continua a emitir, deitamo-nos todos no fundo do barco, cobertos com a vela, para nos protegermos do vento. Um doce calor invade-me o corpo transido pelo frio e o frescor da noite e certamente sou um dos primeiros a começar a roncar.

O dia é claro quando acordo. O sol está saindo de sua cama, o mar está um pouco agitado e seu azul-verde indica que o fundo é de coral.

– Que vamos fazer? Decidimos ir à terra? Estou morrendo de fome e sede.

É a primeira vez que alguém se queixa depois desses dias de jejum, exatamente sete dias, hoje.

– Estamos tão perto da terra, que não vai ser difícil alcançá-la – foi Chapar que falou.

Sentado em meu lugar, vejo claramente diante de mim, depois dos dois rochedos que surgem no mar, a fratura da terra. Portanto, à direita é Trinidad, à esquerda a Venezuela. Sem nenhuma dúvida, estamos no golfo de Paria e, se a água está azul e não amarelada pelos aluviões do Orinoco, é porque estamos na corrente do canal que passa entre os dois países e se dirige para o largo.

– Que vamos fazer? É melhor voltarmos, pois é muito grave a decisão que vamos tomar. À direita, a ilha inglesa de Trinidad; à esquerda, a Venezuela. Por força das condições do barco e do nosso estado físico, temos que ir o mais depressa possível para a terra. Há dois liberados entre nós: Guittou e Corbière. Nós três, Chapar, Deplanque e eu, estamos numa situação mais perigosa. Cabe a nós decidirmos. Que dizem?

– O mais certo é ir para Trinidad. A Venezuela é o desconhecido.

– Não temos necessidade de tomar decisões. Essa lancha que vem chegando vai decidir por nós – diz Deplanque.

Uma lancha, de fato, avança rapidamente para nós. Lá está, pára a mais de 50 metros. Um homem pega um alto-falante. Percebo uma bandeira que não é inglesa. Cheia de estrelas, muito bonita, eu nunca vi essa bandeira em minha vida. Mais tarde, essa bandeira vai ser a “minha bandeira”, a da minha nova pátria, para mim, o símbolo mais emocionante, o de ter, como todo homem normal, reunidas num pedaço de pano, as qualidades mais nobres de um grande povo, meu povo.

– Quién sois vosotros? (Quem são vocês?)

– Somos franceses.

– Están locos? (Estão loucos?)

– Por quê?

– Porque son amarrados a minas. (Porque estão amarrados a minas.)

– É por isso que não se aproximam?

– Sim. Desamarrem, depressa.

– Pronto.

– Em três segundos, Chapar desfaz o nó da corda. Estávamos nem mais, nem menos, amarrados a uma cadeia de minas flutuantes. Um milagre não termos saltado pelos ares, explica-me o comandante da lancha à qual somos amarrados. Sem subir a bordo, a tripulação nos passa café, leite quente bem açucarado, cigarros.

– Vão para a Venezuela, serão bem tratados, eu lhes asseguro. Não podemos rebocá-los para terra porque temos que ir buscar com urgência um homem gravemente ferido no farol de Barimas. Principalmente, não tentem ir a Trinidad, pois há nove chances em dez que vocês choquem em uma mina, e então…

Depois de um “Adiós, buena suerte” (Adeus, boa sorte), a lancha vai embora. Deixaram-nos 3 litros de leite. Arranjamos a vela. Já às 10 horas da manhã, o estômago quase estourando por causa do café com leite, um cigarro à boca, sem tomar nenhuma precaução, dirijo-me para a areia do fim de uma praia, onde umas cinqüenta pessoas reunidas esperavam para ver quem chegava na estranha embarcação, encimada por um mastro quebrado e uma vela de camisas, calças e paletós.

13 A VENEZUELA

OS PESCADORES DE IRAPA

Descubro um mundo, gentes, uma civilização para mim inteiramente desconhecida. Esses primeiros minutos no solo venezuelano são tão emocionantes, que seria necessário um talento superior ao pouco que tenho para explicar, expressar, pintar a atmosfera do caloroso acolhimento que nos foi dado por esse povo generoso. A população é constituída de brancos ou pretos, a grande maioria de cor muito clara, do tom de uma pessoa de raça branca que passou muitos dias exposta ao sol; quase todos os homens têm as calças enroladas até a altura do joelho.

– Pobres rapazes, em que estado vocês estão! – exclamam os homens.

A aldeia de pescadores aonde chegamos chama-se Irapa, município de um Estado denominado Sucre. As moças, todas bonitas, de estatura pequena mas muito graciosas, as mulheres maduras, bem como as velhas, sem exceção, se transformam em enfermeiras, irmãs de caridade ou mães extremosas.

Reunidos no galpão de uma casa, onde penduraram cinco redes de lã e colocaram mesa e cadeiras, fomos lambuzados com manteiga de cacau da cabeça aos pés. Nem um centímetro de carne viva foi esquecido. Mortos de fome e de canseira, nosso jejum tão prolongado provocou-nos desidratação, e essa boa gente do litoral sabe que precisamos dormir, mas também comer em pequenas quantidades.

Enquanto estamos bem acomodados nas redes, dorme, não dorme, as enfermeiras improvisadas vão enfiando bocados de comida em nossas bocas, como se fôssemos criancinhas. Eu estava tão entregue, tão completamente desprovido de força quando me estenderam na rede, minhas chagas em carne viva bem besuntadas de manteiga de cacau, que me sentia como que derretendo, dormindo, comendo, bebendo, sem me dar conta exatamente do que se passava.

As primeiras colheradas de um pirão parecido com a nossa tapioca não foram aceitas pelo meu estômago vazio. Isso aconteceu também com os outros. Todos nós vomitamos, várias vezes, uma parte ou toda a comida que as mulheres introduziam em nossas bocas.

Os habitantes dessa aldeia são muito pobrezinhos. Contudo, cada um deles, sem exceção, contribui para nos ajudar. Dentro de três dias, graças aos cuidados dessa boa gente e graças à nossa juventude, estamos quase de pé. Deixamos as redes durante longas horas e, sentados no rancho coberto de folhas de coqueiro que proporcionam uma sombra fresca, meus camaradas e eu conversamos com esse povo. Não são bastante ricos para nos vestir todos de uma só vez. Formaram pequenos grupos de ajuda. Um se ocupa sobretudo de Guittou, outro de Deplanque, etc. Mais ou menos umas dez pessoas cuidam de mim.