– Que é que acha da idéia, Srta. Ratched? De um baile a fantasia? Aqui, na enfermaria.

– Eu concordo que possa ter uma série de possibilidades terapêuticas – diz ela, e espera. Deixa novamente aquele silêncio emergir de dentro dela. Quando tem certeza de que ninguém vai desafiá-lo, continua. – Mas também creio que uma idéia como essa deveria ser discutida numa reunião da administração do hospital antes que seja tomada qualquer decisão. Não era essa a sua idéia, doutor?

– É claro. Apenas pensei, compreende, que seria bom sondar alguns dos pacientes antes. Mas, certamente, uma reunião do pessoal primeiro. Então daremos prosseguimento aos nossos planos.

Todo mundo sabe que aquilo é tudo o que haverá quanto ao baile.

A Chefona começa a retomar o controle das coisas tamborilando com os dedos na pasta.

– Ótimo. Então, se não há mais nenhum outro tópico novo… e se o Sr. Cheswick se sentar… acho que poderíamos entrar direto na discussão. Nós temos – ela tira o relógio da cesta e olha – ainda 48 minutos. Assim, como eu…

– Oh! Espere. Eu me lembrei de que há mais um outro tópico novo. – McMurphy está com a mão levantada, os dedos estalando. Ela olha para a mão durante muito tempo antes de dizer alguma coisa.

– Sim, Sr. McMurphy?

– Eu não, é o Dr. Spivey. Doutor, conte a eles o que o senhor descobriu a respeito dos caras que têm dificuldade de ouvir e o rádio.

A cabeça da enfermeira dá um pequeno sobressalto. quase que impossível de se ver, mas meu coração de repente disparou. Ela torna a colocar a pasta na cesta e vira-se para o médico.

– Sim – diz o médico. – Eu quase me esqueci. – Ele se recosta, cruza as pernas e junta as pontas dos dedos; posso ver que ainda está de bom humor, por causa do seu baile. – Sabe, McMurphy e eu estávamos conversando a respeito daquele problema antigo que temos aqui nessa enfermaria: a mistura de pacientes, os jovens e os velhos juntos. Não é o ambiente ideal para a nossa Comunidade Terapêutica, mas a Administração diz que não há jeito de modificar isso com o Setor da Geriatria lotado do jeito que está. Sou o primeiro a admitir que não é absolutamente uma situação agradável para nenhum dos envolvidos. Entretanto, na nossa conversa, McMurphy e eu por acaso acabamos por chegar a uma idéia que poderia tornar as coisas mais agradáveis para ambos os grupos de idade. McMurphy comentou que havia notado que alguns dos pacientes mais velhos pareciam ter dificuldades em ouvir o rádio. Ele sugeriu que o volume poderia ser aumentado de forma que os Crônicos com dificuldades de audição pudessem ouvi-lo. Uma sugestão muito humana, eu acho.

McMurphy abana a mão com modéstia, e o médico balança a cabeça para ele e continua.

– Mas eu disse a ele que havia recebido queixas anteriores de alguns dos homens mais jovens, de que o rádio já está tão alto que perturba a conversa e a leitura. McMurphy disse que não havia pensado nisso, mas comentou que realmente parecia uma pena que aqueles que queriam ler não pudessem ir sozinhos para onde fosse tranqüilo, deixando o rádio para aqueles que o quisessem ouvir. Concordei com ele em que realmente era uma pena e estava prestes a deixar de lado o assunto quando por acaso pensei na velha sala da banheira, onde guardamos as mesas durante as sessões. Nós não utilizamos mesmo aquele cômodo para mais nada; já não há mais necessidade da hidroterapia para a qual ele foi idealizado, agora que dispomos de novas drogas. Assim, que é que o grupo acharia de ter aquela sala como uma espécie de anexo, uma sala de jogos, digamos?

O grupo nada diz. Eles sabem de quem é a próxima jogada. Ela torna a dobrar a pasta de Harding, coloca-a no colo e cruza as mãos sobre ela, olhando em volta pela sala como se alguém pudesse ousar ter algo a dizer. Quando fica claro que ninguém vai falar até que ela fale, sua cabeça novamente se volta para o médico. – Soa como um bom plano, Dr. Spivey, e eu aprecio o interesse do Sr. McMurphy pelos outros pacientes, mas, embora lamente muitíssimo, creio que não temos pessoal para cobrir um anexo.

E fica tão segura de que aquilo deve ser o ponto final da conversa que começa a abrir a pasta mais uma vez. Mas o médico já pensou melhor a respeito daquilo do que ela imaginava.

– Eu também pensei nisso, Srta. Ratched. Mas, uma vez que serão em grande parte os pacientes Crônicos que ficarão aqui na enfermaria com o rádio, a maioria dos quais está restrita a espreguiçadeiras e cadeiras de rodas, um ajudante e uma enfermeira aqui dentro devem, facilmente, ser capazes de controlar quaisquer conflitos ou revoltas que possam ocorrer, não acha?

Ela não responde, e também não acha muita graça na brincadeira dele sobre conflitos e revoltas, mas seu rosto não se modifica. O sorriso permanece.

– Assim, os outros dois ajudantes e enfermeiras podem dar cobertura aos homens na sala da banheira, talvez até melhor do que aqui, num aposento maior. Que é que acham, rapazes? É uma idéia que pode funcionar? Eu mesmo estou bastante entusiasmado com ela, e acho que devemos pelo menos fazer uma tentativa, ver como é que funciona, na prática, durante alguns dias. Se não funcionar, bem, ainda temos a chave para tornar a trancá-la, não temos?

– Certo! – diz Cheswick, socando a palma da mão com o punho. Ele ainda está de pé, como se estivesse com medo de chegar perto daquele polegar de McMurphy outra vez. – Certo, Dr. Spivey. se não funcionar, ainda temos a chave para tornar a trancá-la. Pode apostar.

O médico olha em volta pela sala e vê todos os outros Agudos concordando com a cabeça. Sorriem e parecem tão satisfeitos com o que ele crê que seja ele próprio e sua idéia que enrubesce como Billy Bibbit e começa a limpar os óculos uma ou duas vezes antes de conseguir continuar. Acho divertido ver aquele homenzinho tão satisfeito consigo mesmo. Ele olha para todos os que manifestam seu assentimento, e ele mesmo balança a cabeça e diz:

– Bom, bom – e acomoda as mãos nos joelhos. – Muito bom. Agora, se isto está decidido… parece que eu esqueci, o que era que estávamos planejando discutir esta manhã?

A cabeça da enfermeira dá outra vez aquele pequeno sobressalto, e ela se inclina sobre a cesta, apanha uma outra pasta. Remexe nos papéis, e parece que as suas mãos estão trêmulas. Tira um papel, mas mais uma vez, antes que possa começar a lê-lo, McMurphy está de pé, a mão levantada, apoiando-se num pé e no outro, enquanto vai dizendo pensativamente:

– Ooolheee – e ela pára de remexer os papéis, se enrijece como se o som da voz dele a congelasse da mesma maneira como a sua havia congelado aquele crioulo de manhã. Eu torno a sentir aquela sensação de vertigem quando ela se congela. Observo-a atentamente enquanto McMurphy continua: – Ooolhee, doutor, o que eu tenho estado morrendo de vontade de saber é o que é que significava aquele sonho que eu tive na outra noite? O senhor vê, era como se eu fosse eu, no sonho, e então, de novo, assim como se eu não fosse eu… como se eu fosse uma outra pessoa qualquer que parecesse comigo… como… como o meu pai! Sim, era ele mesmo. Era o meu pai, porque às vezes quando eu me via… a ele… eu via que lá estava aquele pino de ferro atravessado no maxilar como papai costumava ter…

– Seu pai tinha um pino de ferro atravessado no maxilar?

– Bem, não tem mais, mas já teve quando eu era garoto. Ele andou por aí uns 10 meses com aquele grande pino de metal entrando por aqui e saindo por ali! Deus, ele era um verdadeiro Frankenstein. Tinha levado um golpe no maxilar com uma machadinha, quando se meteu numa briga qualquer com aquele sujeito lá no serviço de derrubada e transporte de árvores… Deixem-me contar como foi que aquele incidente aconteceu…

O rosto dela ainda se mostra calmo, como se ela tivesse mandado fazer uma matriz e a tivesse pintado, para ter exatamente a aparência que ela quer. Confiante, paciente e serena. Não mais o pequeno sobressalto, apenas aquele terrível rosto frio, um sorriso calmo estampado em plástico; uma testa limpa e lisa, nem uma ruga para mostrar fraqueza ou preocupação; olhos inexpressivos, rasgados, pintados com uma expressão que diz: eu posso esperar, eu posso perder um metro de vez em quando, mas posso esperar, e ser paciente e calma e confiante, porque sei que não há perda verdadeira para mim.

Pensei por um minuto ali que a tivesse visto ser derrotada. Talvez eu tenha visto. Mas vejo agora que não faz nenhuma diferença. Um por um os pacientes lhe estão lançando olhares de esguelha, para ver como é que ela está recebendo a maneira como McMurphy está dominando a sessão, e eles vêem a mesma coisa. Ela é grande demais para ser derrotada, cobre um lado inteiro da sala como uma estátua japonesa. Não há como movê-la, e nenhuma forma de defesa contra ela. Perdeu uma pequena batalha aqui, hoje, mas é uma batalha insignificante numa grande guerra que ela vem vencendo e que continuará vencendo. Não devemos deixar que McMurphy nos desperte esperanças quanto a algo diferente, que nos leve a fazer algum tipo de jogada estúpida. Ela continuará vencendo, exatamente como a Liga, porque tem todo o poder da Liga atrás de si. Ela não perde com as próprias derrotas, mas ganha com as nossas. Para derrotá-la não se tem de vencer duas em três partidas ou três em cinco, mas todas as vezes em que se defrontar com ela. Tão logo se abaixa a guarda; tão logo se perde uma vez, ela terá vencido definitivamente. E, eventualmente, todos nós acabamos perdendo. Ninguém pode impedi-lo.

Agora mesmo, ela está com a máquina de neblina ligada, e a névoa vem rolando tão depressa que nada consigo ver a não ser o rosto dela. Vem rolando cada vez mais densa, e me sinto tão indefeso e morto como me senti feliz há um minuto, quando ela teve aquele pequeno sobressalto – até mais indefeso do que nunca estive antes, porque agora eu sei que não existe realmente uma forma de lutar contra ela ou a sua Liga. McMurphy não pode impedir isso, da mesma maneira como eu não pude. Ninguém pode impedi-lo. E quanto mais eu penso sobre como nada pode ser modificado, mais rápido a neblina vem rolando.

E fico satisfeito quando se torna tão espessa que a gente se perde ali dentro e pode deixar tudo para lá, e ficar novamente em segurança.

Há uma partida de monopólio sendo jogada na enfermaria. Eles estão jogando há três dias, casas e hotéis em todos os lugares, juntaram duas mesas para comportar todos os títulos e as pilhas de dinheiro do jogo. McMurphy os convenceu a tornar o jogo interessante mediante o pagamento de um cêntimo para cada dólar de brinquedo que o banco emite para eles; a caixa de monopólio está cheia de trocados.