O momento em que tem de recolher Maria da Paz aproxima-se, mas, além dessa urgência, por assim dizer com hora marcada, há outra, interior, ainda Mais instante, que aperta com ele, Vai-te embora, sai daqui, lembra-te de que até mesmo das maiores vitórias é conveniente saber retirar-se a tempo. À pressa, colocou sobre a mesa do centro, lado a lado, os documentos de identificação, as chaves da casa, as do carro, o relógio de pulso, a aliança de casamento, um lenço com as suas iniciais, um pente de bolso, disse desnecessariamente que os papéis do automóvel estão no porta-luvas, e logo perguntou, Conhece o meu carro, deixei-o muito perto da porta de entrada, e Tertuliano Máximo Afonso respondeu que sim, Vi-o diante da sua casa de campo quando cheguei, E o seu, onde está, Vai encontrá-lo mesmo à esquina da rua, vire à esquerda quando sair do prédio, é um duas portas azul, disse Tertuliano Máximo Afonso, e, para que não houvesse confusões, completou a informação com a marca do carro e o número de matrícula. A barba postiça estava sobre o braço da cadeira em que António Claro havia estado sentado. Não vai levá-la, perguntou Tertuliano Máximo Afonso, Foi você quem a comprou, fique com ela, a cara com que vou sair agora é a mesma com que hei-de entrar amanhã quando vier mudar de roupa, respondeu António Claro, recuperando um pouco da autoridade anterior, e acrescentou, sarcástico, Até lá, serei eu o professor de História Tertuliano Máximo Afonso. Olharam-se durante alguns segundos, agora, sim, eram certas, certas para sempre, as palavras com que o outro Tertuliano Máximo Afonso havia recebido à chegada António Claro, O que tínhamos para dizer um ao outro já foi dito. Tertuliano Máximo Afonso abriu sem ruído a porta da escada, afastou-se para deixar sair o visitante, e, devagar, com os mesmos cuidados, tomou a fechá-la. O mais natural será pensar que procedeu assim para não despertar a curiosidade maliciosa da vizinhança, mas Cassada, se aqui estivesse, não deixaria de nos recordar que precisamente desta maneira se baixa também a tampa de um caixão. Tertuliano Máximo Afonso voltou para a sala, sentou-se no sofá e, fechando os olhos, deixou-se reclinar para trás. Durante uma hora não se moveu, mas, ao contrário do que se poderia julgar, não dormiu, esteve simplesmente a dar tempo para que o seu velho carro saísse da cidade. Pensou em Maria da Paz sem mágoa, apenas como alguém que aos poucos se desvanecesse na distância, pensou em António Claro como um inimigo que havia vencido a primeira batalha, mas que irá perder a segunda se neste mundo ainda resta um pouco de justiça. A luz da tarde decaía, o seu carro já devia ter abandonado a estrada principal, o mais provável foi que o tivessem levado pelo desvio que poupa a travessia da povoação, neste momento detém-se diante da casa de campo, António Claro tirou uma chave do bolso, a esta não podia tê-la deixado em casa de Tertuliano Máximo Afonso, dirá a Maria da Paz que lhe foi cedida pelo proprietário da vivenda, mas, evidentemente, ele não sabe que vamos passar aqui a noite, É meu colega da escola, pessoa de toda a confiança, mas não ao ponto de que eu lhe dê conta dos meus assuntos particulares, agora esperas aqui um pouco, vou ver se está tudo em ordem lá dentro. Maria da Paz ia perguntar a si mesma que coisas poderiam não encontrar-se em ordem numa casa de campo que está para alugar, mas um beijo de Tertuliano Máximo Afonso, daqueles profundos, daqueles avassaladores, distraiu-a, e depois, durante os minutos que ele esteve ausente, foi atraída pela beleza da paisagem, o vale, a linha escura de choupos e freixos que acompanha o leito do rio, os montes ao fundo, o sol que quase já roça a lomba mais alta. Tertuliano Máximo Afonso, este que acabou de se levantar do sofá, adivinha o que António Claro anda a fazer lá dentro, passa friamente revista a tudo quanto o possa denunciar, alguns cartazes de filmes, mas desses não virá o perigo, deixá-los-á onde estão, um professor pode muito bem ser um cinéfilo, o pior era aquele retrato seu, ao lado de Helena, que está em cima de uma mesa da sala de entrada. Apareceu enfim à porta, chamou-a, Já podes vir, havia aqui umas cortinas velhas caídas no chão que davam um péssimo aspecto à casa. Ela saiu do carro, feliz subiu correndo os degraus de acesso, a porta cerrou-se ruidosamente, à primeira vista poderá ter parecido uma recriminável falta de cuidado, mas há que levar em conta que a vivenda se encontra isolada, não tem vizinhos nem perto nem longe, além disso, é nosso dever ser compreensivos, as duas pessoas que acabaram de entrar têm assuntos muito mais interessantes a resolver que preocuparem-se com o barulho que uma porta faz ao fechar-se.

Tertuliano Máximo Afonso levantou do chão, onde tinha caído, a fotocópia da carta que António Claro trouxera, abriu depois a gaveta da secretária em que havia guardado a resposta da produtora, e, com os dois papéis na mão, mais a fotografia que havia tirado com a barba postiça, dirigiu-se à cozinha. Pô-los dentro do lava-louça, chegou-lhes um fósforo aceso e ficou a olhar o rápido trabalho do fogo, a labareda que ia mastigando e engolindo os papéis e logo os vomitava feitos em cinza, as rápidas cintilações que teimavam em mordê-los quando a chama, aqui e além, parecia ter-se extinguido. Deu um jeito ao que ainda restava para que acabassem de queimar-se, depois deixou correr a água da torneira até que a última partícula de cinza desapareceu pelo cano abaixo. A seguir foi ao quarto, retirou as cassetes de vídeo do armário onde as havia escondido e regressou à sala. A roupa de António Claro, por ele trazida da casa de banho, encontrava-se arrumada em cima da cadeira de assento estofado. Tertuliano Máximo Afonso despiu-se todo. Franziu o nariz de repugnância ao pôr a roupa interior que havia sido usada pelo outro, mas não havia remédio, a tanto o obrigava a necessidade, que é um dos nomes que toma o destino quando lhe convém disfarçar-se. Agora que se via convertido à situação de outro de Tertuliano Máximo Afonso, mais não lhe restava que tornar-se no António Claro que o mesmo António Claro abandonara. Por sua vez, quando amanhã voltar para recuperar a roupa, António Claro só como Tertuliano Máximo Afonso poderá sair à rua, terá de ser Tertuliano Máximo Afonso por todo o tempo que roupas suas, próprias, estas que aqui deixou ou outras, tardarem a devolver-lhe a identidade de António Claro. Quer se queira, quer não, o hábito é o melhor que há para fazer o monge. Tertuliano Máximo Afonso aproximou-se da mesa em que António Claro tinha deixado os objectos pessoais e, metodicamente, concluiu o seu trabalho de transformação. Principiou pelo relógio de pulso, enfiou a aliança no dedo anelar esquerdo, meteu num bolso das calças o pente e o lenço com as iniciais AC, no bolso do outro lado as chaves da casa e do carro, no de trás os documentos de identificação que, em caso de dúvida, como indiscutível António Claro o haverão de acreditar. Está pronto para sair, só lhe falta o retoque final, a barba postiça que António Claro trazia quando aqui entrou, dir-se-ia que adivinhara que iria ser necessária, mas não, a barba só tinha ficado à espera de uma coincidência, se às vezes tardam anos a chegar, outras vezes vêm a correr, todas em fila, umas atrás das outras. Tertuliano Máximo Afonso foi à casa de banho para rematar o disfarce, de tanto tirar e pôr, de tanto passar de cara a cara, a barba já pega mal, já ameaça tornar-se suspeita ao primeiro olhar de lince de um agente de autoridade ou à sistemática desconfiança de um cidadão timorato. Melhor ou pior, acabou finalmente por agarrar-se à pele, agora só terá de aguentar-se o tempo necessário para que Tertuliano Máximo Afonso encontre um contentor de lixo num local não demasiado concorrido. Aí culminará a barba postiça a sua breve mas agitada história, aí acabarão, entre restos fétidos e trevas, as cassetes de vídeo. Tertuliano Máximo Afonso voltou à sala, passou os olhos em redor a ver se esquecia algo que lhe viesse a fazer falta, depois entrou no quarto, sobre a mesa-de-cabeceira está o livro das antigas civilizações mesopotâmicas, não existe nenhum motivo para o ter consigo, mas apesar disso irá levá-lo, na verdade não há quem perceba o espírito humano, que falta faria a Tertuliano Máximo Afonso a companhia dos semitas amorreus e dos assinos, se em menos de vinte e quatro horas vai estar outra vez nesta sua casa. Alea jacta est, murmurou para os seus adentros, não há mais que discutir, o que tiver de acontecer, acontecerá, não poderá escapar a si mesmo. O rubicão é esta porta que se fecha, esta escada que se desce, estes passos que levam àquele automóvel, esta chave que o abre, este motor que suavemente o faz deslizar pela rua fora, a sorte está lançada, agora os deuses que decidam. Este mês é Agosto, o dia é sexta-feira, há pouco trânsito de carros e pessoas, tão longe estava a rua aonde se dirige e de repente fez-se perto. É noite há mais de meia hora. Tertuliano Máximo Afonso arrumou o carro em frente do prédio. Antes de sair olhou para as janelas e em nenhuma delas viu luz. Hesitou, perguntou-se, E agora, que faço, ao que respondeu o raciocínio, Vamos a ver, não percebo essa indecisão, se és, como quiseste parecer, António Claro, o que tens a fazer é subir tranquilamente a tua casa, e se as luzes estão apagadas, por algum motivo há-de ser, repara que não são as únicas em todo o prédio, e, como não és gato para poderes ver na escuridão, o que tens que fazer é acendê-las, isto supondo que, por qualquer causa que desconhecemos, não há ninguém à tua espera, ou melhor, a causa sabemo-la todos, lembra-te de que disseste à tua mulher que, por questões de trabalho, terias de ficar esta noite fora de casa, agora aguenta-te. Tertuliano Máximo Afonso atravessou a rua com o livro dos mesopotâmicos debaixo do braço, abriu a porta do prédio, entrou no elevador e viu que tinha companhia, Boas noites, estava à tua espera, disse o senso comum, Era inevitável que aparecesses, Que ideia é essa de aqui vires, Não armes em ingénuo, sabe-lo tão bem como eu, Vingar-te, desforrar-te, dormir com a mulher do inimigo, já que a tua está na cama com ele, Exacto, E depois, Depois, nada, à Maria da Paz nunca lhe passará pela cabeça que dormiu com o homem trocado, E estes daqui, Estes vão ter de viver a pior parte da tragicomédia, Porquê, Se és o senso comum devias sabê-lo, Perco qualidades nos ascensores, Quando o António Claro entrar amanhã em casa vai ter a maior das dificuldades para explicar à mulher como foi que conseguiu dormir com ela e ao mesmo tempo estar a trabalhar fora da cidade, Não imaginei que fosses capaz de tanto, é um plano absolutamente diabólico, Humano, meu caro, simplesmente humano, o diabo não faz planos, aliás, se os homens fossem bons, ele nem existiria, E amanhã, Arranjarei um pretexto para sair cedo, Esse livro, Não sei, talvez o deixe ficar aqui como recordação. O elevador parou no quinto andar, Tertuliano Máximo Afonso perguntou, Vens comigo, Sou o senso comum, aí dentro não há lugar para mim, Então, até à vista, Duvido.